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Leitura Bíblica – Breves Comentários ao Gênesis 1-5

Leitura das Sagradas Escrituras

Livro do Gênesis

INTRODUÇÃO

O Livro de Gênesis é o primeiro livro da Bíblia e compõe com os livros de Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio um grande e única obra denominada Pentatêuco, também chamado de Torá.

O Livro do Gênesis tem a peculiaridade de descrever a criação e o princípio de tudo, aliás, o próprio nome Gênesis significa princípio, origem, daí surgem os nomes gênese, genética.

1. Autoria

Existe uma antiga tradição que atribui a Moisés, o líder hebreu que retira o povo descendente de Abraão do Egito, por volta do ano 1400 a.C., e o leva à Canaã, a autoria do Gênesis. As razões dessa afirmação se devem ao fato de Moisés ter trazido do monte Sinai as tábuas da Lei escritas e de alguns trechos se referirem à Lei como escrita por Moisés, como é o caso de Êxodo 24, 4. Não é impossível que Moisés tenha escrito o Décalogo (Dez Mandamentos) e alguma outra parte adjacente, por assim dizer, o núcleo da legislação, mas não existem outras indicações de que ele efetivamente tenha escrito o Livro do Gênesis.

Teólogos biblistas no final do século XIX construíram uma teoria sobre a autoria do Gênesis, partindo da análise dos textos, da gramática hebraica e do comparativo dos diversos textos. Segundo esses estudiosos os cinco primeiros livros da Bíblica são o resultado de quatro documentos diferentes, escritos por quatro tradições diversas, mas bem depois de Moisés, que viveu no século XIV a.C.

Essas quatro obras ou tradições que deram origem ao Pentateuco são denominadas de Tradição Javista, que são aqueles textos que usam o nome Iahweh para se referir a Deus, e que teria sido escrito por volta do século IX a.C., em Judá (uma das tribos de Israel), a Tradição Eloísta, que são aqueles textos que usam o nome de Deus como Elohim, e que teria sido escrita após a queda do Reino do Norte, por volta de 720 a.C. E ainda, a Tradição Sacerdotal que são aqueles textos que ressaltam sobremaneira os elementos cultuais e litúrgicos do Antigo Testamento, e a Tradição Deuteronomista que são aqueles textos que se dispõem à repetir a repassar textos informações anteriormente já expostos.

Todas essas tradições teriam sido fundidas em um só escrito, depois do exílio babilônico, por volta do século V a.C.

Assim, acredita-se atualmente que todo o conjunto narrativo, sem prejuízo de alguma parte ter sido escrita pessoalmente por Moisés, foi mantido por tradição oral e religiosa, até que surgiram as tradições Eloísta e Javista, que deram origem aos quatro textos originais, que fundidos compuseram o Pentateuco.

2. Breves Notas

Como dissemos antes, o Livro do Gênesis integra uma obra maior juntamente com os Livros do Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, chamada Torá. O termo hebraico Torá pode ser traduzido por instrução, mas também é frequentemente traduzido por Lei (Lv 11, 46 e Ez 43, 12-12). Na Septuaginta, que é a versão grega do Antigo Testamento, traduzida por volta do século III a.C., o termo Toráfoi traduzido por nomos (nómos) que significa lei em grego.

O gênero literário predominante no Pentatêuco é a lei. Enquanto no Gênesis temos essencialmente um texto narrativo, nos demais livros do Pentatêuco temos a narrativa mesclada à lei[1].

O Gênesis se divide em duas partes básicas, a saber, (i) a proto-história que corresponde ao que podemos denominar de pré-história bíblica, que vai desde a criação até o momento anterior à revelação de Deus à Abrão, (ii) a história dos patriarcas[2].

A proto-história é um conjunto narrativo dos primórdios de todos os tempos, contendo as primeiras alianças – Aliança Adâmica e Aliança de Noé – e seus desenvolvimentos até o momento em que Deus entra na história da humanidade para formar um povo que vai levar o seu nome.

Na proto-história temos a criação (1,1 – 2,25), a queda (3), os primeiros filhos (4,1 – 3), o primeiro crime (4,4 – 8), o desenvolvimento da humanidade (4,17 – 26),  o pecado que toma conta da humanidade (6, 5 – 8), o dilúvio e o recomeço com Noé (6, 6 – 8,22), o repovoamento do mundo e a continuidade do pecado (9,1 – 10-32) e a Torre de Babel (11).

A história dos patriarcas narra desde a escolha de Abrão, o seu chamado desde a sua habitação em Ur dos Caldeus (12,1 – 3), a peregrinação de Abrão (14,3 – 20,18), o nascimento de Isaac (22), o seu casamento e o nascimento de Esaú e Jacob (25, 19 – 34), os patriarcas filhos de Jacob (35, 23-26), a história de José (37, 2 – 45, 28), a ida ao Egito (46,1 – 50, 26).

Durante muito tempo, a crença na inspiração divina dos livros sagrados levou os estudiosos a afirmarem a historicidade plena do Gênesis. No entanto, desde o século XVII, graças ao trabalho de Peyere[3], uma parte considerável dos biblistas têm considerado os aspectos narrativos, sobretudo, da proto-história, em especial os seus elementos fantásticos (paraíso, serpente, árvores da ciência e da vida) como elementos míticos, cujo fim é transmitir mais, bem mais, uma mensagem teológica, do que propriamente um conjunto de fatos históricos.

A alusão ao mito não deve causar estranheza em matéria bíblica ou teológica, pois o seu uso como instrumento de ensinamento de uma realidade maior é uma prática comum. O uso de figuras, estórias e parábolas como forma de explicar realidades morais e mesmo elementos profundos do caráter de Deus, como por exemplo, o seu amor e o seu perdão, foram largamente utilizados por Nosso Senhor Jesus Cristo, que lançou mão de parábolas por diversas vezes.

Um mito[4] (em grego: μυθος) que pode ser transliterado por mithós nada mais é do que uma narrativa de caráter simbólico, que procura explicar e demonstrar, por meio da ação e do modo de ser das personagens, a origem das coisas.

Hoje sabemos que muitos elementos narrativos do Gênesis estavam presentes em outras culturas da humanidade antiga, como Sumérios[5] e Babilônios[6]. Dentre esses mitos comuns temos o poema sumério Atrahasis, que menciona a criação do homem a partir do barro, por um conjunto de deuses e deusas, e ainda, o  Enuma Elish, o mito da criação para os babilônicos que guarda algumas semelhanças como o Gênesis, como o tempo de criação em seis dias, bem como a ordem das coisas tais quais foram criadas.

O que nos ensina a Santa Igreja Católica é que “No princípio, criou Deus o céu e a terra” é isso que consta no Credo dos Apóstolos, e é em tal verdade que a Igreja nos ensina a acreditar (CIC[7] 279). O modo de criação, isto é, como Deus operacionalizou a criação, quais foram os métodos utilizados, quais foram as técnicas utilizadas por Deus, não são uma preocupação da Igreja, conquanto se reconheça que Deus, por vontade livre e por puro amor (CIC 295), Deus criou o céu, a terra e tudo o que neles há.

São essas algumas breves notas para orientar nossa leitura do Livro do Gênesis.

Gabriel Campos, Brasília – DF, 30 de novembro de 2022, Festa de Santo André.

Leitura das Sagradas Escrituras 2024

Livro do Gênesis

CAPÍTULO 1

O capítulo 1 do Livro do Gênesis traz o relato da criação a partir do nada (ex nihilo), isto é, nada existia antes da criação do universo por Deus. Sem matéria pretérita existente, Deus cria tudo a partir do nada, pelo poder de sua palavra.

A criação é descrita como uma ação direta e pessoal de Deus em um espaço de uma semana de sete dias, sendo que nos seis primeiros dias, Deus cria todas as coisas, e no sétimo dia Deus descansa do seu trabalho. O sétimo dia é santificado como um dia de descanso.

A semana de criação consiste em dez comandos divinos, dados em seis dias, seguido de um dia de descanso.

  1. Primeiro dia: Deus cria a luz (O primeiro comando é “Haja luz”). A luz é separada da escuridão.
  2. Segundo dia: Deus cria um firmamento (o segundo comando é “Faça-se um firmamento no meio das águas, e haja separação entre águas e águas”).
  3. Terceiro dia: Deus manda as águas se juntarem em um lugar e a terra seca aparecer (o terceiro comando é “Ajuntem-se num só lugar as águas, que estão debaixo do céu, e apareça o elemento seco”). Deus manda a terra fornecer ervas, plantas e árvores frutíferas (o quarto comando é “Produza a terra relva, ervas que deem semente, e árvores frutíferas que, segundo as suas espécies, deem fruto que tenha em si a sua semente, sobre a terra”).
  4. Quarto dia: Deus cria luzes no firmamento para separar a luz da escuridão e marcar dias, estações e anos. Dois grandes luzeiros são criados (provavelmente o Sol e a Lua) e as estrelas. (o quinto comando é “Haja luzeiros no firmamento do céu, que façam separação entre o dia e a noite; sejam eles para sinais, e para tempos determinados, e para dias e anos; e sejam para luzeiros no firmamento do céu a fim de alumiar a terra”).
  5. Quinto dia: Deus manda o mar se encher de criaturas vivas e pássaros voarem pelos céus (o sexto comando é “Produzam as águas enxames de seres viventes, e voem as aves acima da terra no firmamento do céu.”). Deus cria pássaros e criaturas e os manda serem frutíferos e se multiplicarem (o sétimo comando é “Frutificai, multiplicai-vos e enchei as águas nos mares, e multipliquem-se as aves sobre a terra.”)
  6. Sexto dia: Deus manda a terra produzir criaturas vivas (o oitavo comando é “Produza a terra seres viventes segundo as suas espécies: animais domésticos, répteis e animais selvagens segundo as suas espécies”), fez feras selvagens, animais e répteis. Cria, então, a humanidade à sua própria imagem e semelhança (o nono comando é “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança: domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todo o réptil que se arrasta sobre a terra.”). O décimo comando é “Frutificai, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.” Deus descreve a criação como “muito boa”.
  7. Sétimo dia: Deus descansa e abençoa o sétimo dia.

A grande lição que o relato da criação descrito no capítulo 1 do Gênesis quer nos ensinar é que Deus é o criador pessoal de todas as coisas e sem ele nada do que foi feito se fez. Com outras palavras, não existe nada no universo que não tenha sido criado por Deus. Nesse sentido, vale lembrar o que diz o Credo Niceno-Constantinopolitano: “Criador do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”.

A indagação científica acerca da criação instiga o homem há séculos e a Igreja reconhece essa perspicácia cientifica do homem como algo positivo. A esse respeito o Catecismo em seu item 283 diz:

A questão das origens do mundo e do homem tem sido objecto de numerosas investigações científicas, que enriqueceram magnificamente os nossos conhecimentos sobre a idade e a dimensão do cosmos, a evolução dos seres vivos, o aparecimento do homem. Tais descobertas convidam-nos, cada vez mais, a admirar a grandeza do Criador e a dar-Lhe graças por todas as suas obras, e pela inteligência e saber que dá aos sábios e investigadores. Estes podem dizer com Salomão: «Foi Ele quem me deu a verdadeira ciência de todas as coisas, a fim de conhecer a constituição do Universo e a força dos elementos […], porque a Sabedoria, que tudo criou, mo ensinou» (Sb 7, 17-21).

Nesse sentido, a Igreja vai além e diz que mais importante que saber como o mundo foi criado, em quanto tempo, por meio de qual processo evolutivo, se este existiu, é saber o porquê da criação. Isto é, com qual desígnio, com qual intenção foi o mundo criado, e mais ainda, com que desígnio o homem foi criado. Essa é a grande questão.

E o que o capítulo 1,31 do Gênesis nos diz é que “viu Deus que tudo era muito bom”. Uma coisa que a Igreja sempre ensinou, a partir do estudo de Gênesis 1, da sua harmonia, de sua descrição perfeita e crescente é que o mundo foi criado por Deus, por amor e para a sua glória (Catecismo, itens 293 e 294).

Veja a diferença entre a narrativa do Gênesis acerca da criação e o mito babilônico Enuma Elish. Enquanto no Enuma Elish existe uma certa cooperação, confusão e mesmo intriga entre os diversos deuses criadores, resultando a criação em certa desordem, no relato do Gênesis, a criação é um ato consciente, livre, perfeito, bom e resultado de puro amor, e o mais importante, a criação é o ato de um único Deus.

Outro aspecto importante é a criação do mundo a partir do nada (ex nihilo), isto é, sem se valer de qualquer matéria preexistente (Catecismo, 296) e o faz de tal forma ordenado que é possível ao homem, a partir de sua inteligência, imaginar a existência divina a partir da criação (Catecismo, 286). Nesse sentido, a Igreja rechaça de todas as formas e com todas as forças a ideia de que o mundo foi obra do acaso, que a matéria se dispôs e se organizou a partir de processos físico-químicos e biológicos sem que por trás não estivesse a mão poderosa de Deus conduzindo tudo de acordo com sua vontade (Catecismo, 284).

Foi o amor que motivou a criação do mundo, consequentemente, foi o amor que motivou a criação do homem, e Deus assim fez, criou o mundo e o homem para neles manifestar o seu amor, porque o amor não contém em si mesmo, quem tem amor vai necessariamente manifestar e doar esse amor e Deus é amor (I Jo 4,6). Nesse sentido, diz-nos o Catecismo no item 288 que a criação e a revelação de Deus são desígnios inseparáveis, pois Deus cria o universo e homem para revelar para eles e neles a sua glória e o seu amor (Catecismo, 288).

Quanto à questão do desdobramento físico-histórico do processo de criação, este não é por certo a preocupação do autor do Gênesis. Com efeito, o autor do Gênesis não buscou trazer para nós um tratado geológico, histórico e físico-químico da criação do universo e do homem. Na verdade, a mensagem do livro do Gênesis e do seu capítulo primeiro em especial é uma mensagem teológica: Deus criou os céus e a terra. Nesse sentido, a ciência pode e deve investigar o processo de surgimento, desenvolvimento e funcionamento do universo, da vida e de todos os fenômenos naturais, tendo a Igreja uma visão positiva e animada de tal missão (Catecismo, 283). Todavia, o que importa para o leitor do Gênesis é saber, acreditar e confiar no que ensina a Igreja: “No princípio criou Deus o céu e a terra”.

O propósito do capítulo 1 do Gênesis é nos ensinar, ainda que por meio de uma linguagem figurada, que a criação é obra da Santíssima Trindade (CIC 290); que tudo foi criado para a glória de Deus (CIC 293); que a criação é um ato de amor de Deus, de pura emanação de amor, por Deus é Amor (CIC 295); que tudo o que existe foi criado do nada (CIC 296); que tudo foi criado de forma ordenada e boa (CIC 299); que Deus transcende a criação e está presente nela, mas não se confunde com ela (CIC 300) e que Deus sustenta toda a criação (CIC 301).

Gabriel Campos, Brasília – DF, 08 de abril de 2021, Memória de Santo Alberto

Leitura das Sagradas Escrituras 2024

Livro do Gênesis

CAPÍTULO 2

Há um consenso entre os biblistas de que os capítulos 1 e 2 do Livro do Gênesis correspondem a dois relatos distintos da criação, isto é, em lugar de uma história da criação, a Bíblia nos conta duas histórias da criação, sendo uma no capítulo 1 e outra no capítulo2, porém tais relatos da criação não contraditórios.

A não contradição se dá pela simples observação de que no primeiro relato, aquele trazido, pelo capítulo 1, de tradição sacerdotal, a preocupação do autor está em torno do cosmos, da superestrutura da criação, do mundo físico propriamente, razão pela qual o homem somente vai aparecer no último no sexto e último dia da criação (1,1,27).

Enquanto no capítulo 2, de tradição javista, o autor apresenta a criação sob um prisma eminentemente antropológico, com efeito, a criação sob a perspectiva do capítulo 2 centra-se especificamente no homem, como objeto da criação de Deus (2,7), na criação da mulher (2,21-22), na estruturação da família (2,23) , no caráter sagrado da instituição familiar (2,24).

Enquanto no capítulo 1 Deus é apresentado como aquele que cria por meio da palavra (1,3); no capítulo 2, Deus é o oleiro, ele toca o pó da terra com água, faz a argila e modela o homem (2,7) e este homem composto de barro ainda não é um ser vivo, mas tão somente um molde, que somente adquire vida quando o próprio hálito de Deus preenche suas narinas (2,7). O sopro do hálito de Deus para dar via ao homem traz a ideia da intimidade, da proximidade e da intimidade. Na criação da mulher, Deus é o cirurgião que anestesia o homem, fazendo-o adormecer (2,21), retira-lhe uma costela e agora como um oleiro-biológico ele cria a mulher (2,22), apresentando-a ao homem que a recebe como esposa e como parte de si mesmo (2,23).

Enquanto no capítulo 1 toda a natureza está à disposição do homem, segundo a ordem de Deus: “sujeitai-a e dominai”; no capítulo 2 existe um limite radical, que o homem não pode ultrapassar, porque se o fizer “certamente morrerás” (2,17), é a árvore do conhecimento do bem e do mal (2,17). Por fim, anote-se que no jardim havia também a árvore da vida, que se fosse comida pelo homem, teria como consequência a garantia da vida eterna (3,22).

Enquanto no capítulo 1 o homem, nada obstante, ser feito à imagem de Deus, é parte da criação como mais uma criatura; no capítulo 2 o homem e no capítulo 3, a mulher, são seres humanos definidos e qualificados pelos nomes (2,21; 3,20).

Por fim, enquanto nenhum aspecto subjetivo do homem é tratado no capítulo 1; no capítulo 2, o verso 25 aponta a pureza como característica própria deste homem antes do pecado.

O descanso de Deus no sétimo dia da criação (2,2-3) aponta para a necessidade de descanso humano, tomando como exemplo o próprio descanso (figurado) de Deus após a obra da criação. Portanto, quando o sábado é inserido no grupo dos mandamentos (Ex 20,8), o que está em voga ali não é o sábado propriamente, mas o descanso como símbolo do fim da criação dos cosmos.

Todavia, toda a criação aponta para o ápice de toda ação de Deus que se dá em Cristo, que “faz novas todas as coisas” (Ap 21,5), pois se o ápice da criação do mundo se dá com o descanso no sábado e sua santificação; o ápice da revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo se dá na ressurreição.

Os apóstolos e a Igreja perceberam essa leitura logo no início, razão pela qual, começaram desde cedo a guardar o domingo como dia santo, como o Dies Domini (At 20,7).

Uma questão interessante no capítulo 2 é o fato de se mencionar ali os quatro rios que estavam em torno do Jardim do Éden. Após o relato javista da criação (capítulo 2), de natureza antropológica,  surge a história dos quatro (Gn 2,10-14). A percepção que se tem é a de que a menção a esses rios não guarda qualquer consonância com a história e o relato javista da criação. Sobre os rios propriamente, apenas o Tigre e o Eufrates são conhecidos até hoje. Segundo Dianne Bergant e Robert Karris[8], os versos 10-14 foram inseridos posteriormente à narrativa javista, com o fim de dar uma noção geográfica da localização do Jardim do Éden (2,8). Tal justificativa merece crédito, mormente quando sabemos hoje que os Rios Tigre e Eufrates desaguam no Golfo Pérsico, local onde se situa as ruínas de Ur dos Caldeus, região onde morava Abraão, que mais tarde será chamado a formar o Povo de Deus (11,28-32).

A conclusão da leitura dos dois capítulos, como já dito no comentário ao capítulo 1, é que o autor do Gênesis não pretende trazer uma narrativa histórico-geográfica precisa e científica da criação, embora se inseriu depois a história dos quatro rios, mas trazer sim uma mensagem teológica de Deus criando todas as coisas, e o homem em especial, como um gesto de amor e de expressão de sua glória e bondade.

Uma questão interessante é a falsa proposição de um antagonismo entre o criacionismo e o evolucionismo. Digo falso porque criacionismo e evolucionismo, a rigor, não são antagônicos necessariamente.

Em primeiro lugar, é preciso afirmar que a posição católica é a afirmação de que todas as coisas foram criadas por Deus. No entanto, a mesma Igreja Católica não define o modo como Deus criou todas as coisas, isto é, Deus pode ter criado todas as coisas a partir de uma única palavra, como também Deus pode ter criado todas as coisas por meio de um lento e complexo processo evolutivo ao longo de bilhões de anos, como a ciência tenta explicar. A propósito, quem disse que a ordem divina: “Faça-se a luz!” (Gn 1,3) não foi a ordem divina para a grande explosão do átomo primordial, popularmente conhecida como Teoria do Big Bang, dando origem ao universo? A propósito, cumpre salientar que a “teoria do átomo primordial” como é conhecida a “teoria do big bang, como forma de explicação da origem do universo foi idealizada por um Padre Católico. Sim, o astrofísico e padre belga Georges Lamaître (1894-1966) foi o autor de tal teoria, uma das mais aceitas até hoje sobre a origem do universo.

Em segundo lugar, é preciso lembrar que a Igreja não se opõe ao estudo das hipóteses científicas evolutivas, como explicação para a origem do universo, e ainda, origem da vida. O que a Igreja tenazmente considera errado a ideia de que todo o universo, e, sobretudo, o ser humano adveio do nada, pois como diz o princípio metafísico Ex nihilo nihil fit, do nada, nada se faz. Portanto, a Igreja sustenta a criação como um ato de amor de Deus, que pode até ter sido o resultado de um processo evolutivo pensado e idealizado por Deus.

A esse propósito, confira o que disse o sapientíssimo Papa Pio XII na encíclica Humani Generis de 12 de agosto de 1950:

36. Por isso o magistério da Igreja não proíbe que nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos se trate da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria viva preexistente (pois a fé nos obriga a reter que as almas são diretamente criadas por Deus), segundo o estágio atual das ciências humanas e da sagrada teologia, de modo que as razões de uma e outra opinião, isto é, dos que defendem ou impugnam tal doutrina, sejam ponderadas e julgadas com a devida gravidade, moderação e comedimento, contanto que todos estejam dispostos a obedecer ao ditame da Igreja, a quem Cristo conferiu o encargo de interpretar autenticamente as Sagradas Escrituras e de defender os dogmas da fé.[10] Porém, certas pessoas, ultrapassam com temerária audácia essa liberdade de discussão, agindo como se a própria origem do corpo humano a partir de matéria viva preexistente fosse já certa e absolutamente demonstrada pelos indícios até agora achados e pelos raciocínios neles baseados, e como se nada houvesse nas fontes da revelação que exigisse a máxima moderação e cautela nessa matéria.

O que a Igreja efetivamente não é o falso ensinamento acerca da evolução, que muitas vezes é ensinada como verdade científica, quando está muito aquém de tal realidade, sendo até hoje, nada obstante, todas as pesquisas realizadas, ainda uma mera teoria.

Gabriel Campos, Brasília – DF, 11 de abril de 2021, Memória de Santo Estanislau (1030-1079).

Leitura das Sagradas Escrituras 2024

Livro do Gênesis

CAPÍTULO 3

O estudo do capítulo 3 do Livro do Gênesis é de fundamental importância para a compreensão do tema do Pecado Original e da economia da salvação.

1. INTRODUÇÃO

O capítulo 3 narra a primeira desobediência, e embora a narrativa não seja completa, é presumível a partir do texto a afirmação de uma vida anterior à desobediência.

Com efeito, o texto do verso 8 informando que Deus “passeava pelo jardim sob brisa da tarde, tendo chamado o homem (v. 9) indica que a vida de Adão e Eva era uma vida de comunhão com Deus. Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem que vivia no Éden era um homem sem pecado, vivendo uma perfeita intimidade com Deus.

A liberdade oferecida ao homem era plena, limitada apenas pela obediência de não comer do fruto da árvore que estava no meio do jardim, a árvore do conhecimento do bem e do mal, sob pena de morrer (2, 17)[9]. Toda a questão posta aqui se resume a um ensinamento: o homem criado à imagem e semelhança de Deus, recebeu a vida, dons, o Éden, a amizade de Deus, os meios de sobrevivência enfim… e seu único dever é o de obedecer a uma ordem, não comer do fruto da árvore do meio do jardim. Essa exigência de obediência revelava apenas e tão somente a condição do homem de subordinado a Deus, isto é, tudo o que homem precisaria fazer era reconhecer a superioridade do criador, devotando-lhe essa obediência[10].

2. Descrição da cena

A serpente entra em cena dentro deste contexto (v. 1).

A serpente começa por confundir a Eva: “É verdade que Deus vos proibiu de comer do fruto de toda a árvore do jardim?” (v. 1). Ora, a serpente sabia que não era assim, que a liberdade era plena, limitada apenas por uma única árvore, mas com a proposta confusa, a serpente estabelece um diálogo com Eva, que se vê obrigada, pelo diálogo, a sanar a dúvida da serpente (v. 3).

O passo seguinte é a serpente questionando o veredito de Deus: “Certamente não morrerás” (v. 4). Então, uma vez lançada a dúvida sobre a palavra de Deus, a serpente procura mostrara as “vantagens” da desobediência: “no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal” (v. 5).

Esse é o cerne do pecado original.

Em lugar de uma vida de plena liberdade oferecida ao homem, limitada apenas pelo reconhecimento da superioridade de Deus, plasmada na obediência quanto ao fruto proibido, o homem e a mulher viram uma possibilidade de vida sem essa limitação de obediência a Deus.

O pecado original consistiu exatamente no desejo de ser semelhante a Deus, e, portanto, sendo semelhante a Deus, não haveria a necessidade de obediência, não haveria a necessidade de reconhecer a superioridade de Deus. Agora, o homem é capaz de se auto conduzir, ele basta a si mesmo, ele não precisa de um Deus.

Esse é o pecado original cometido por Adão e que ele transmitiu a toda humanidade, gerando as consequências que serão vistas adiante.

O Catecismo da Igreja Católica no item 390 nos ensina que “a narrativa da queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de imagens, mas afirma um acontecimento primordial, um facto que teve lugar no princípio da história do homem (264). A Revelação dá-nos uma certeza de fé de que toda a história humana está marcada pela falta original, livremente cometida pelos nossos primeiros pais (265).

3. Análise do Pecado Original segundo a teologia católica

O diálogo da mulher e da serpente é claro. O verso 6 diz que a mulher vendo que o fruto era bom para comer, apropriado para abrir a inteligência, tomou dele e o comeu.

A descrição do versículo 6 mostra três estágios da tentação: primeiro a sedução dos sentidos, contido na visão e no desejo de comer, o prazer proporcionado aos sentidos; em segundo lugar, o fato de o fruto ser apropriado para abrir a inteligência, no sentido de ter poder; e o terceiro o desejo de possuir, de ter para si, na medida em que a mulher tomou o fruto em suas mãos.

Nessas três fases da tentação de Eva podemos ver a tentação de todos nós, a origem de todos os pecados. Todo pecado passa por essas três fases: a tentativa de satisfação dos desejos, dos sentidos; a tentativa de satisfação do poder; e a tentativa de ter para si, de possuir.

A essas três facetas a teologia católica denomina de as três concupiscência, a teologia católica denomina as três concupiscências, as três ἐπιθυμία (Epithumia).

A primeira concupiscência presente na tentação de Eva é a libido amandi, o apetite desordenado na satisfação dos sentidos, de tudo aquilo que possa significar algum tipo de satisfação ou prazer. É preciso dizer que a satisfação dos sentidos e a obtenção de prazer não é si nenhuma causa de pecado, mas a busca desordenada, ou ainda, fora dos limites e modos estabelecidos por Deus é que constitui o pecado. Assim, o prazer de alimentar-se, o prazer sexual, o descanso, a alegria são sensações que Deus criou para o bem-estar do homem. Mas tais prazeres quando buscados de forma desordenada, como um fim em si mesmo, constituem o que a Igreja chama de libido amandi. Em Eva contemplamos a libido amandi no olhar, na perspectiva de sabor, no desejo, materializado no Gênesis na agradabilidade do fruto proibido.

A segunda concupiscência presente na tentação de Eva é a libido possidendi, que pode ser descrita como a concupiscência animal, e tem por objeto as coisas que não se apresentam para a sustentação e o prazer da carne, mas que agradam à imaginação [delectabilia secundum apprehensionem imaginationis] ou a uma percepção semelhante, por exemplo, o dinheiro, o ornato das vestes, e outras coisas deste gênero. É esta espécie de concupiscência que se chama de concupiscência dos olhos.

Por fim, a terceira concupiscência presente na tentação de Eva é a libido dominandi, consistente no desejo de ter para si, de dominar e de exercer sobre o objeto o poder de mando e ser igual a Deus.

É exatamente por trilhar esse caminho que Eva vai cometer o pecado de desobediência: Em primeiro lugar, Eva quer ter o prazer de um fruto saboroso; em segundo lugar, Eva quer ter o poder e a sabedoria que aquele fruto pode proporcionar; e em terceiro lugar, Eva quer possuir, dominar aquele objeto.

Esses três passos, podemos dizer, são os passos integrantes do pecado original.

Quando analisamos a tentação de Cristo podemos verificar essa mesma dinâmica: O Diabo tenta Jesus inicialmente pela possibilidade de transformar pedras em pães, aparecendo aqui a libido amandi (Mt 4,3); em segundo lugar, o Diabo tenta Jesus quanto ao exercício do seu poder e de suas prerrogativas de filho de Deus, consistente em sua autoridade o que lhe permitia ter anjos a seu serviço, aparecendo a libido possidendi (Mt 4,6); e em terceiro lugar, o Diabo tenta Jesus a partir da possibilidade do desejo de ter, de possuir algo para si, aparecendo aqui a libido dominandi (Mt 4,8-9).

São João, em sua primeira Carta (2,16) trará esse tema dizendo: “Porque tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida – não procede do Pai, mas do mundo”. São João, vai reforçar esse entendimento chamando essas concupiscências de ἐπιθυμία τῆς σαρκὸς (Epithumia tês sarkos) a concupiscência da carne, traduzindo a ideia do prazer desordenado; a ἐπιθυμία τῶν ὀφθαλμῶν (Epithumia ton oftalmon) que é a concupiscência dos olhos, traduzindo a ideia do poder e da superioridade; e a ἀλαζονεία τοῦ βίου (aladzoneía tou biou) que é a soberba da vida, traduzindo a ideia de ter de possuir e de ter para si.

O que se percebe ao final é que a dinâmica do pecado, com que a serpente tentou Eva e com que Satanás tentou Cristo passa pelo mesmo caminho: a libido amandi que se materializa na concupiscência da carne; a libido possidendi que se materializa na concupiscência dos olhos; e a libido dominandi que se materializa na soberba da vida.

4. Solução proposta pela teologia católica

A questão posta no capítulo 3 de Gênesis, vista também na tentação de Cristo e de certo modo visto em todo e qualquer pecado grave, tem como solução de resistência e de prevenção os remédios quaresmais propostos pela Igreja Católica. Com efeito, as práticas quaresmais do jejum, da oração e da esmola constituem os três antídotos contra a dinâmica da tentação com que a serpente tentou Eva e tentou Jesus Cristo (Catecismo item 1.438).

Se a tentação de Eva tem início com a libido amandi que se consubstancia na busca da satisfação dos desejos, dos prazeres, teremos no jejum e na abstinência de prazeres lícitos o mecanismo de fortalecer o nosso espírito para resistir às tentações quanto aos prazeres ilícitos.

Como a tentação de teve como segunda etapa a libido dominandi que se materializa no desejo de poder, a oração contínua, que nos permite o reconhecimento da superioridade de Deus, fortalecerá nosso espírito de obediência.

Por fim, como a tentação de Eva teve como resultado a libido possidendi que se materializa no desejo de possuir e de ter para si, a esmola, como instrumento de desapego de bens materiais, constitui o antídoto para essa etapa da tentação.

Por fim, é preciso salientar que tais exercícios não precisam se limitar ao tempo quaresmal, sendo salutar a sua prática em todo e qualquer momento de vida, sobretudo, em momentos de aridez espiritual.

Outro aspecto interessante da teologia católica, relacionado a essa dinâmica da tentação, consiste na proposta católica para as pessoas de vida consagrada, monges, frades e religiosos em geral. Os três votos a que tais pessoas estão vinculadas enquanto permanecerem neste estado de vida: a castidade, obediência e pobreza, se contrapõe em sua própria estrutura e natureza às etapas constituidoras da tentação e do pecado. Com efeito, o voto de pobreza, enquanto forma de despojamento de bens materiais e patrimônio fortalecerá o espírito quanto à libido possidendi; o voto de castidade consistente em uma entrega completa a Deus, fortalecerá o espírito quanto à libido amandi e o voto de obediência, consistente em controle da avidez e da autocondução de vida fortalecerá o espírito quanto à libido dominandi.

5. Consequências do Pecado Original

As consequências do pecado original estão previstas nos itens 402-412 do Catecismo da Igreja Católica. São Paulo nos ensina que pela desobediência de um só homem, todos se fizeram pecadores (Rm 5,19), por consequência, a morte, resultado do pecado, passou a ser o veredito de todos os homens (Rm 5,12), essa é, pois, a primeira consequência do pecado original.

Dada a universalidade do pecado original, pois ele atinge todos os homens, será necessária uma medida erradicação desse mal da alma do homem. A Igreja administra o Batismo para a remissão dos pecados, como o sacramento que apaga a mancha do pecado original (Catecismo, 292).

O item 404 do Catecismo da Igreja Católica nos ensina que o pecado de Adão se tornou o pecado de todos os seus descendentes. Todo o gênero humano é, em Adão sicut unum corpus unius hominis – como um só corpo dum único homem. Este mistério se explica pelo fato de que Adão tinha recebido de Deus a santidade e justiça originais, que também seriam transmitidas a toda a sua descendência. Porém, uma vez tendo consentido com o pecado, em lugar de transmitir a inocência, Adão e Eva transmitiram o pecado original.

O pecado original consiste na privação da santidade e justiça originais, mas a natureza humana não se encontra totalmente corrompida, ensina-nos o Catecismo no item 405. Ela a natureza está ferida, sujeita à ignorância, sofrimento e inclinada ao pecado, sendo essa inclinação chamada de concupiscência. O Batismo, ao conferir a vida da graça de Cristo, apaga o pecado original e reorienta o homem para Deus, mas as consequências para a natureza, enfraquecida e inclinada para o mal, persistem no homem e convidam-no ao combate espiritual.

O item 406 do Catecismo nos ensina que “A doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado original foi definida sobretudo no século V, particularmente sob o impulso da reflexão de Santo Agostinho contra o pelagianismo, e no século XVI, por oposição à Reforma protestante. Pelágio sustentava que o homem podia, pela força natural da sua vontade livre, sem a ajuda necessária da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa; reduzia a influência do pecado de Adão à de um simples mau exemplo. Os primeiros reformadores protestantes, pelo contrário, ensinavam que o homem estava radicalmente pervertido e a sua liberdade anulada pelo pecado das origens: identificavam o pecado herdado por cada homem com a tendência para o mal («concupiscência»), a qual seria invencível. A Igreja pronunciou-se especialmente sobre o sentido do dado revelado, quanto ao pecado original, no segundo Concílio de Orange em 529 (297) e no Concílio de Trento em 1546 (298)”.

A consequência final do pecado original é a condição humana descrita no item 407 do Catecismo, segundo o qual: “Pelo pecado dos primeiros pais, o Diabo adquiriu um certo domínio sobre o homem, embora este permanecesse livre. O pecado original traz consigo «a escravidão, sob o poder daquele que possuía o império da morte, isto é, do Diabo» (299). Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da acção social (300) e dos costumes”.

Todavia, é de salutar importância entender que a queda, conquanto tenha sido um ato grave por parte do homem, Deus jamais abandonou esse homem, mesmo após o pecado original. Em Gênesis 3,15, no texto do protoevangelho, temos a promessa de Deus que resgataria o homem a partir de um descendente da mulher, fato que se cumpre em Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, conforme atesta São Paulo em Gálatas 4,4.

A história da humanidade não é outra senão a história da revelação, por meio da qual, como diz o item 27 do Catecismo: “Deus não cessa de atrair o homem para Si e só em Deus é que o homem encontra a verdade e a felicidade que procura sem descanso”.

6. Pergunta inquietante

Por fim, trago aqui uma possível pergunta, feita tantas vezes por mentes inquietas e bons corações, bem a resposta de um dos Santos Padres[11].

Mas porque é que Deus não impediu o primeiro homem de pecar? São Leão Magno responde: «A graça inefável de Cristo deu-nos bens superiores aos que a inveja do demónio nos tinha tirado» (310). E São Tomás de Aquino: «Nada se opõe a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais alto depois do pecado. Efetivamente, Deus permite que os males aconteçam para deles tirar um bem maior. Daí a palavra de São Paulo: “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Por isso, na bênção do círio pascal canta-se: “Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor!”» (311).

Gabriel Campos, 1º de janeiro de 2022, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

Leitura das Sagradas Escrituras 2024

Livro do Gênesis

CAPÍTULO 4

O capítulo do Livro do Gênesis narra de modo sintético, na forma do primeiro homicídio dentre os filhos de Adão e Eva, como seria o futuro da humanidade, dividida entre dois grupos, a saber, aqueles que buscarão uma relação com Deus e aqueles que buscarão viver longe de Deus, bem como da oposição que existirá entre um e outro.

1. Narrativa Bíblica

O tema central está nos versículos 1-16, que narra a vida dos primeiros filhos de Adão e Eva, chamados de Caim e Abel (1-2). Caim tornou-se lavrador e Abel pastor de ovelhas. Ao fim de certo tempo, ambos apresentam oferendas a Deus. Enquanto Caim oferece produtos do campo (3); Abel oferece o que tem de melhor dentre as ovelhas do seu rebanho (4). Deus se agrada de Abel e de sua oferta, mas não de Caim e de sua oferta (4-5). O ódio de Caim pela rejeição de Deus leva-o a assassinar o seu irmão (8). Questionado por Deus (9), Caim foge dali e ergue uma cidade (16). Em razão do seu pecado, Caim passa a viver como um errante (12), entendendo que sua culpa é maior do que a sua capacidade de suportar (13). Deus então põe um sinal sobre Caim, para que ninguém o mate (15).

Os versículos 17-26 narram a descendência de Caim, mostrando de um modo mais claro o início da vida pecaminosa, dissoluta e violenta, pois como disse no início, esse capítulo 4 narra as duas opções da humanidade: viver próximo a Deus, ou viver distante de Deus.

Dentre os descendentes de Caim está o Lamec, cujos descendentes, Jabel, Jubal e Tubalcaim, respectivamente, os antepassados dos que vivem em tendas e criam rebanhos, dos que tocam lira e charamela, e ainda, dos que laminam o cobre e o ferro (19-22).

Os versos 23-24 trazem o “Poema da Violência” (nome dado por mim) de Lamec. Interessante notar que os atos de Lamec em vingança pelas ofensas que sofre são desproporcionais.

Por fim, os versos 25-26 narram o nascimento do terceiro filho de Adão e Eva, esse foi chamado de Set. Já adulto, Set gera um filho chamado Enos, quando então se passa a invocar o nome de Deus.

2. Análise do Capítulo 4

O tema central do capítulo 4 é a divisão da sociedade humana entre aqueles que andam com Deus (Abel) e aqueles que não andam com Deus (Caim), bem como a oposição que existe entre ambos, com a clara indicação da intolerância de Caim, personificando os que se afastam de Deus, para com Abel, que personificam aqueles que de algum modo buscam uma relação com Deus.

A rejeição de Deus não é pessoal ou discriminatória em relação a Caim, pois o texto é claro que antes de rejeitar a oferenda, Deus já havia rejeitado a Caim. Sim o texto diz: “Não se agradou de Caim e de sua oferenda”. A rejeição não é da oferenda, mas da pessoa ofertante. E por que Deus não teria aceitado a Caim e a sua oferta? O verso 7 responde, quando o próprio Deus questiona a Caim acerca de sua condição de chateado: “O pecado jaz a sua porta”. Essa é a razão de não aceitação de Caim e de sua oferenda, pois Caim era, já há tempos, um homem injusto e rebelde contra Deus, agindo contrariamente à reta e boa consciência[12]. Como prova disso, quando ele é confrontado acerca de sua conduta pelo próprio Deus, em lugar de arrependimento (8) ele preferiu matar seu irmão. Lembremos aqui do Salmo 51, quando Davi compreende que as ofertas de bois e carneiros no altar nada valem, caso a elas não correspondam um coração arrependido (Sl 51, 8, 18-21). E o mesmo vale para o Católico de hoje que vai à Missa, atua em várias Pastorais e não ama seu irmão…

Por óbvio, o entendimento contrário vale para Abel. Observe que o texto se refere ao fato de que Deus se agradou de Abel e de sua oferta, como disse antes, Deus atenta para a pessoa e não para a oferta, a oferta quando muito simboliza a dádiva de um coração puro. São Lucas narra a história de uma viúva que estava na Sinagoga, tendo depositado duas moedas como oferta, enquanto os ricos depositavam grandes quantias. Jesus viu a cena e disse aos discípulos que ela doou mais do que todos os outros, pois aqueles davam daquilo que lhes sobejava, enquanto ela deu tudo quanto tinha (Lc 21, 1-4). Abel, segundo a narrativa não deu apenas uma ovelha em sacrifício, mas deus o que tinha de melhor dentre as suas ovelhas (4), ressaltando mais que um sacrifício, mas ainda, um coração puro e um homem justo.

O homicídio narrado é a consequência direta do pecado. Deus é o sumo bem e puro amor, logo o afastamento de Deus despe o homem de toda a bondade e de amor, surgindo como consequência o ódio e o desamor.

Apesar de não ser um livro histórico, as Sagradas Escrituras buscam de algum modo relacionar-se com a história e o desenvolvimento da humanidade, por isso, as duas atividades de Caim e Abel de algum modo se relacionam com as primeiras atividades humanas, a saber, a coleta de vegetais e frutos, e mais, tarde o seu cultivo, e ainda, a busca da carne animal para sobreviver, primeiro na forma da caça, e em seguida, com a domesticação de animais. Também, mais tarde, dentre os descendentes de Caim, haverá menção às atividades de pecuária (20), às artes (21) e à metalurgia (22), mostrando assim que o desenvolvimento humano vai partir da agricultura e caça, para atividades de maior desenvolvimento de sensibilidades, como a atividade artística, e ainda, para atividades de maior conhecimento, como a metalurgia[13][14].

Caim como o homicida de Abel vai inaugurar sobre a terra a violência, a maldade, o ódio, a vingança desproporcional, o que se vê no “Poema da Violência” de Lamec, descendente de Caim (23-24).

Por fim, percebemos como mensagem final do capítulo (25-26) a notícia de que outros descendentes de Adão e Eva, em lugar de seguir o exemplo de Caim, fará o caminho oposto e buscará a Deus e a justiça, como fez Abel. Com outras palavras, nada obstante o mal que Caim fez, bem como o mal que ele fez desenvolver dentre os seus descendentes, sempre haverá “um resto”[15] de pessoas dispostas a servirem a Deus. Coloquemo-nos sempre nesse “resto”.

Gabriel Campos, 1º de janeiro de 2022, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

Leitura das Sagradas Escrituras 2024

Livro do Gênesis

CAPÍTULO 5

O capítulo 5 narra a descendência de Adão até o dilúvio. Esse tema da narrativa de descendência é relativamente comum em alguns pontos do Antigo Testamento, e em dois momentos do Novo Testamento, em Mateus 1, 1-16, e Lucas 3, 23-38, e, embora, possa parecer uma leitura enfadonha, é interessante notar que em alguns casos tais leituras podem trazer bons ensinamentos.

1. Narrativa Bíblia

Todos os versos tratam da vida de Noé e de seus descendentes, dizendo a idade com que gerou o primeiro filho, bem como o total de anos vividos. Os únicos versos que destoam desse modelo de narrativa são o verso 1, que trata de Adão, por óbvio, sendo o primeiro homem, o verso 22 que trata de Henoc, que foi arrebatado por Deus, e ainda, o verso 29 que trata de Noé.

Análise do Capítulo 5

A primeira coisa que salta aos olhos quando lemos o capítulo 5 do Gênesis é a longevidade dos patriarcas que chega às centenas de anos. Diversas teorias existem com a intenção de explicar tais números. Alguns estudiosos já pensaram em uma leitura literal, considerando que realmente essas pessoas viveram centenas de anos, sendo essa uma forma que Deus usaria para que a população crescesse rapidamente. Já se pensou também na ideia de que a contagem do tempo, forma do ano solar ou ano lunar, é bem mais recente[16]. Por fim, parece mais razoável pensar que se trata de uma linguagem simbólica, referindo-se não à idade do patriarca em si, mas sim ao tempo de duração daquela família ou clã. Essa forma de pensar é mais condizente com a realidade humana e o conhecimento biológico do homem. Ademais, é também mais condizente com o que diz as Escrituras em outros momentos sobre a idade do homem, como o Salmo 90, 10, que diz que a vida do homem é de 70 anos e o que passar disse é cansaço e enfado.

Mais interessante do que gastarmos tempo com tais indagações, é observar que essa narrativa dos descendentes de Set (5, 1-32) corresponde às gerações daqueles que buscam a Deus; enquanto a narrativa do capítulo 4, 17-24, corresponde aos descendentes de Caim, isto é, àqueles que não buscam a Deus[17], mostrando que a tendência da humanidade será sempre essa, a opção do homem em buscar a Deus ou dele se afastar.

O verso 1 começa com Adão, por meio do qual o pecado entrou no mundo. Henoc viveu com Deus por 365 anos, uma alusão aqui ao nosso ano de 365 dias, mostrando um andar constante com Deus, que tem como resultado a salvação integral, no caso aqui, na forma de um arrebatamento. A mensagem aqui é o resultado da caminhada com Deus. Por fim, a alusão diferenciada a Noé, que vai a partir da arca, durante o dilúvio, proporcionar a salvação do “resto” daqueles que creem em Deus.

Gabriel Campos, 1º de janeiro de 2022, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus


[1] LÓPEZ, Félix Garcia. O pentateuco. Tradução Alceu Luiz Orso. 2ª Ed. São Paulo: Ave Maria, 2004, p. 15.

[2] ALTER, Robert. KERMODE, Frank. Guia literário da bíblia. São Paulo: Unesp, p. 5.

[3] Cf. LÓPEZ, Félix Garcia. O pentateuco. Tradução Alceu Luiz Orso. 2ª Ed. São Paulo: Ave Maria, 2004, p. 65.

[4] GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 2

[5] A civilização suméria floresceu entre os anos 4.500 e 1.900 a.C. na região do Golfo Pérsico entre os rios Tigres e Eufrates.

[6] A Babilônia foi um dos grandes impérios da antiguidade, ocupando quase todo o Oriente Médio, entre 1.900 e 538 a.C.

[7] CIC Catecismo da Igreja Católica.

[8] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert. Comentário bíblico. São Paulo: Loyola, vol 1, p.. 60.

[9] Catecismo da Igreja Católica, item 396: Deus criou o homem «à sua imagem» e constituiu-o na sua amizade. Criatura espiritual, o homem só pode viver esta amizade na modalidade da livre submissão a Deus. É isso o que exprime a proibição feita ao homem de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, «pois no dia em que o comeres, morrerás» (Gn 2, 17). A «árvore de conhecer o bem e o mal» (Gn 2, 17) evoca simbolicamente o limite intransponível que o homem, como criatura, deve livremente reconhecer e confiadamente respeitar. O homem depende do Criador. Está sujeito às leis da criação e às normas morais que regulam o exercício da liberdade.

[10] Catecismo da Igreja Católica, item 396: Deus criou o homem «à sua imagem» e constituiu-o na sua amizade. Criatura espiritual, o homem só pode viver esta amizade na modalidade da livre submissão a Deus. É isso o que exprime a proibição feita ao homem de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, «pois no dia em que o comeres, morrerás» (Gn 2, 17). A «árvore de conhecer o bem e o mal» (Gn 2, 17) evoca simbolicamente o limite intransponível que o homem, como criatura, deve livremente reconhecer e confiadamente respeitar. O homem depende do Criador. Está sujeito às leis da criação e às normas morais que regulam o exercício da liberdade.

[11] Os números se referem aos itens do Catecismo da Igreja Católica.

[12] BALLARINI, O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p. 100.

[13] BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental (Donaldo M Garschagen). São Paulo: Globo, 4ª ed. Vol. I, pág. 12.

[14] FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do estado (Tradução Marlene Holzhausen). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 36-40.

[15] Mais tarde veremos que a “Teologia do Resto” será sempre uma constante nas Escrituras, tanto no Antigo Testamento, como também no Novo Testamento. Voltaremos ao tema com certa frequência.

[16] LEAL, SJ. Juan (Organ.) La sagrada escritura texto y comentario antiguo testamento. Madrid, 1967, vol. I, p. 86.

[17] BALLARINI, O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p. 101.

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