1. O QUE É LITURGIA[1]
O termo liturgia é vulgarmente entendido como o conjunto de ritos, ou ainda, uma compilação de ritos para cerimônias religiosas, notadamente aquelas de cunho cristão. Atualmente, outras expressões religiosas, inclusive aquelas estranhas ao cristianismo, têm usado o termo liturgia para expressar o modo de realização de seus cultos. No entanto, no cristianismo, e notadamente, na Igreja Católica, o termo liturgia se ressalta por possuir um sentido real, teológico e pastoral, muitas vezes integrando a própria essência do ato religioso, conforme veremos a seg
Existe, ainda, uma forma extra religiosa do uso do termo liturgia, que é o conjunto de atos formais de determinadas cerimônias de ordem política e jurídica. Nesse sentido, temos os atos e ordens de certas ações de autoridades como Presidentes da República, soberanos; ordem e atos formais de tribunais e serviços diplomáticos. Nesses últimos casos, o termo liturgia, embora seja usado para defini-los, ultimamente vem perdendo espaço para o termo cerimonial.
1.1. Liturgia em Sentido Etimológico
O termo liturgia, em sentido etimológico, advém do latim liturgia, construído a partir do grego leitoourgia (leitourgia), formada a partir da palavra laos (laos = povo) e ergon (ergón = obra, atividade), para então definir uma obra, uma atividade, um ministério realizado em favor do povo, da população[2][3]. A atividade que os gregos conheciam como leitoourgia (leitourgia) para designar uma ergon (ergón = obra, atividade) em favor do laos (laos = povo) é atualmente melhor definida como serviços públicos, assim entendidos como aquelas atividades que o Estado realiza em favor da coletividade. Então, em sua origem na cultura grega[4], o termo liturgia se prestava a definir tanto as atividades públicas, como a atividade religiosa.
1.2. Sentido Religioso
A comunidade cristã do Novo Testamento cedo passou a usar esse termo. Não apenas nas atividades seculares de assistência aos pobres, ação que a Igreja realizou desde o início, mas também nas atividades sacras da Igreja, como (i) a pregação da palavra divina, (ii) as orações dos Apóstolos e seus sucessores, (iii) o sacrifício da Missa[5].
No texto bíblico, temos o uso do termo liturgia para designar (i) a atividade de Zacarias no Templo (Lc 1, 23) e o próprio Cristo é chamado no livro de Hebreus como leitourgos em razão de sacrifício na cruz em favor de todo o povo.
Assim e com o passar do tempo, a Igreja se apossou definitivamente do termo liturgia, cristianizando essa palavra, para definir o culto da Igreja nascente, de tal modo que nos ensina João Batista Reus[6] que os Santos Padres, a partir do século II já usavam o termo liturgia para definir a ação dos padres e bispos da Igreja e o sacrifício de Cristo na cruz e a própria missa.
Qual a importância da liturgia na prática do cristianismo?
Ora, a expressão maior do cristianismo é a celebração da Missa, quando pelas mãos do sacerdote, agindo in persona Christi, a comunidade cristã é colocada diante do calvário, vivenciando substancialmente, a paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ocorre que as palavras humanas não são suficientes para descrever tão grande mistério e nem mesmo a mente humana consegue apreender tão nobre e grave conteúdo. Por essa razão, é necessário um conjunto de atos previamente ordenados, a utilização de elementos simbólicos como velas, vestes, cruz, dentre outros, para levar as pessoas a uma compreensão mais clara de tão grande mistério. Nesse sentido, a liturgia tem a função de instrumentalizar e tornar mais fácil a apreensão de todo o conteúdo da Missa.
Aqui vale uma ressalva: Quando se fala nos elementos simbólicos da Missa, a expressão “simbólico” não vale para definir a consagração do pão e do vinho no corpo e sangue do Senhor. Com efeito, na consagração eucarística não cabe falar em simbolismo, em razão do milagre da transubstanciação, que transforma o pão e o vinho verdadeiramente em corpo e sangue de Cristo.
O Catecismo da Igreja Católica, em seu item 1069, diz que “Pela liturgia, Cristo, nosso redentor e sumo sacerdote, continua em sua Igreja, com ela e por ela, a obra de nossa redenção”. Como se pode perceber, os atos litúrgicos não são meros protocolos a serem seguidos por disposição legal da Igreja, mas uma forma real de termos entre nós a presença real de nosso Senhor, razão pela qual, a Igreja deve atentar com máximo cuidado para a prática desses atos.
A Constituição Dogmática Sacrossanto Concílio[7], em seu parágrafo 2, afirma que:
2. A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, «se opera o fruto da nossa Redenção» (1), contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos (2).
2. LITURGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
Por volta do século XIII a.C., quando Moisés lidera os descendentes de Abraão, saindo do Egito para a terra de Canaã, episódio descrito no Livro de Êxodo, ocorre o início da reconstrução religiosa daquele povo, que vai se transformar no Reino de Israel, de onde nascerá Jesus Cristo, como parte do projeto de revelação de Deus.
Nesse momento histórico, Deus prescreve para o povo uma lei básica de comportamento religioso e moral, que denominamos de Dez Mandamentos ou Decálogo (Êxodo 20, 1-17), e ainda, uma legislação litúrgica no livro de Levítico, sobre o procedimento do culto judaico, contendo: o ritual dos sacrifícios, ritual dos ministros e sacerdotes, normas sobre o povo puro e impuro, o dia da expiação e a Lei da Santidade.
O Livro de Levítico é o código litúrgico do judaísmo, onde se observa a descrição de sacrifícios e atividades religiosas no Templo. E a chamada liturgia veterotestamentária.
3. A LITURGIA NA INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
Nosso Senhor Jesus Cristo em seu terceiro ano de ministério, dirige-se a Jerusalém, quando então será preso, morto e sepultado, para ressurgir gloriosamente, para a salvação do gênero humano.
No dia de sua prisão, Jesus se reúne com os seus discípulos para a ceia. A presença de Jesus com os discípulos, imortalizada na obra de Leonardo da Vinci[8] conhecida como “A Última Ceia”[9], é na verdade a Primeira Missa, pois ali, naquele dia, o próprio Cristo institui o sacramento da Eucaristia e do Sacerdócio (Mt 26, 17-30; Mc 14, 12-26; Lc 22, 7-21; Jo 13, 1 – 17, 26).
É interessante notar nas passagens dos quatro Evangelhos, ao descreverem a última ceia, que Jesus vai determinar aos discípulos uma ordem de preparação para a ceia. Em outra palavra, uma liturgia (Mt 26, 17-19; Mc 14, 12-16; Lc 22, 7-13). Observa-se, aqui, um cuidado especial do próprio Jesus de Nazaré com a ordem litúrgica da Pascoa Judaica, a necessidade de segui-la em todos os seus aspectos.
4. LITURGIA NA ERA APOSTÓLICA E OS PADRES DA IGREJA
O início da Igreja ainda é um período com a liturgia em formação, mesclando certos aspectos da liturgia judaica com a liturgia eucarística instituída por Jesus Cristo. Veja que São Paulo usa institutos próprios do judaísmo, quando ordena que as mulheres usem véu (I Co 11), e ainda, para a Eucaristia ele usa os ensinamentos do próprio Cristo (I Co 11, 23-26).
A liturgia da Igreja, nos tempos apostólicos, é bastante concisa e se centra basicamente na Eucaristia (I Co 11, 23-26) frequentemente denominada de Fração do Pão (At 2, 42; 20, 7).
Vejamos mais sobre a “fração” ou o “partir o pão”.
Quando Jesus ressuscitou, ainda antes de encontrar os apóstolos, ele aparece a dois de seus discípulos que iam no caminho de Emaús, uma cidade localizada a 11 km de Jerusalém, quando conversam sobre os últimos acontecimentos, a saber, a prisão e morte de Jesus (Lc 24, 13-35). O trauma dos acontecimentos e Jesus em seu corpo glorioso, são fatores que impedem os dois discípulos de reconhecerem Jesus. Quando chegam a Emaús e ainda sem reconhecê-lo, eles insistem para que Jesus fique com eles por mais um tempo, no que são atendidos. No entanto, ao cear com eles, Jesus é reconhecido ao “partir do pão” (Lc 24, 30-31).
O “partir o pão” é a descrição da liturgia da Missa nos dias apostólicos. Assim, São Lucas descreve a frequência dos primeiros cristãos à Missa: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações” (At 2, 42). Mais tarde, durante a terceira viagem missionária de São Paulo, São Lucas descreve no livro de Atos a presença do apóstolo na cidade de Trôade, na Ásia Menor, atual Turquia, durante a realização de uma Missa de domingo. São Lucas diz que eles se reuniram no “primeiro dia da semana com o fim de partir o pão” (At 20, 7).
Na medida em que a Igreja se espalhava por toda a Judeia, Samaria, e ainda, a partir das viagens de São Paulo, quando a Igreja efetivamente começa a se espalhar por todo o mundo, a liturgia começa a se desenvolver de forma mais precisa.
Por volta do século II, durante o reinado de Antonino Pio[10], surgiram denúncias de que o culto cristão, a Missa, em sua liturgia, abrigava certas práticas contrárias ao direito romano. Nessa época, um proeminente filósofo romano, Flavius Justinus, que mais tarde será conhecido como “São Justino, o Mártir”, que se tornara cristão, escreve uma carta ao Imperador Antonino Pio defendendo o culto cristão das falsas acusações.
Essa carta tem uma relevantíssima importância litúrgica e histórica, porque ela detalha a celebração da Missa em uma época muito próxima dos tempos apostólicos. Assim descreve São Justino[11]:
1.No dia dito do sol (domingo) reúnem-se em um mesmo lugar todos os cristãos, os que residem nas cidades e os que residem no campo.
2. O leitor lê trechos tirados das memórias dos Apóstolos (Novo Testamento) e dos livros dos Profetas (Antigo Testamento).
3. Terminada a leitura, aquele que preside toma a palavra para explicar aos presentes o que foi lido e exortá-los a pôr em prática tão belos ensinamentos (homilia).
4. Em seguida, levantamo-nos todos e dirigimos a Deus orações e súplicas (súplica insistente ou ecteni, após o Evangelho).
5. Suspendendo as orações, abraçamo-nos uns aos outros (Ósculo da paz).
6. Depois levam àquele que preside a reunião dos irmãos em Cristo, pão e um cálice contendo vinho, misturado com água (Procissão do ofertório).
7. O Presidente toma o pão e o cálice, louva e glorifica o Pai do universo em nome de seu Filho e Espírito Santo; dirige-lhe abundantes ações de graças por ter-se dignado dar-nos estes dons (Anáfora).
8. Terminada esta ação de graças (Eucaristia) todos os presentes exclamam: Amém.
9. Depois os ministros que chamamos diáconos distribuem a todos os presentes o pão da Eucaristia e o vinho misturado com água (Comunhão). Estes mesmos diáconos levam aos ausentes sua parte do pão e do vinho eucarísticos.
10. Por fim, os ricos socorrem os indigentes (Coletas).
Como se pode observar do relato de São Justino, escrito por volta do ano 155, a celebração da Missa já contava com um rito próprio, um rito específico. E de um modo geral, a descrição da Missa por São Justino mostra uma perfeita sintonia entre o que se celebrava no segundo século e a Missa celebrada hoje. Com o depoimento de São Justino, temos a certeza de que seguimos, na Igreja, a Tradição Apostólica.
5. CONCLUSÃO
A melhor forma de concluirmos essa breve introdução à liturgia consiste em atentarmos para o parágrafo 10 da Constituição Dogmática Sacrossanto Concílio[12], e que é reafirmado no item 1079 do Catecismo da Igreja Católica que diz: “A liturgia é o ápice para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte de onde emana toda a sua força”. Ora, o ápice para o qual tende a ação da Igreja é o próprio Cristo, e é de Cristo que recebemos toda a força. A liturgia é o serviço que prestamos a Cristo e é de Cristo que nos provém toda a força de que precisamos.
Brasília – DF, 02 de dezembro de 2021
Gabriel de Britto Campos
Memória de São Silvério, Papa
[1] Gabriel Campos, 28/11/2021.
[2] MALHADAS, Daisi. (Coordenação). Dicionário Grego-Português. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008, v. III, p. 115, 117.
[3] Catecismo da Igreja Católica, item 1069.
[4] Aqui é preciso lembrar que durante o tempo de vida terrena de Jesus, todo o mundo conhecido, embora estivesse sob domínio político-militar de Roma, a cultura, o modo de vida, o idioma e a cosmovisão eram essencialmente grega. Alexandre (356-323 a.C) havia dominado com seus exércitos todo o mundo conhecido e seus sucessores implantaram o modo de vida e a cultura grega por onde dominaram, era o Helenismo.
[5] REUS, Pe. João Batista. Curso de liturgia. São Paulo: Cultor de Livros, 2018, p. 17.
[6] Idem.
[7] Constituição Dogmática Sacrossanto Concílio é o documento do Concílio Vaticano II sobre a liturgia da Igreja Católica, foi promulgada pelo Papa Paulo VI em 04/12/1963.
[8] Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um pintor, escultor, arquiteto, matemático, inventor e escritor, na República de Florença (atual Itália), reconhecido como um dos maiores nomes do Renascimento.
[9] A Última Ceia é um afresco de Leonardo da Vinci para a igreja de Santa Maria delle Grazie em Milão, Itália.
[10] Imperador romano entre 138-161.
[11] JUSTINO DE ROMA. I Apologia. São Paulo: Paulus, 1995, p. 83.
[12] Constituição Dogmática Sacrossanto Concílio é o documento do Concílio Vaticano II sobre a liturgia da Igreja Católica, vigente atualmente, tendo sido promulgada pelo São Papa Paulo VI em 04/12/1963.