CURSO LEITURA COMENTADA DAS SAGRADAS ESCRITURAS 2022/2023
LIVRO DO GÊNESIS
A História de José
(Gn 37-50)
CAPÍTULOS 37-50
A revelação que Deus fez de si a Abraão já está agora na quarta geração, com José, que é filho de Jacob, que é filho de Isaac, que é filho de Abraão. Com outras palavras, José é bisneto de Abraão. A pretensão divina de formar um povo começa a tomar forma. Com um casal de um único filho, Abraão, Sarah e Isaac, a família passou ao casal Isaac e Rebeca, com dois filhos, Esaú e Jacob, e Jacob, com suas duas esposas e quatro concubinas já possuem treze filhos. Quando Jacob, agora Israel, envelhecer e mudar-se para o Egito, como veremos nos últimos capítulos de Gênesis, os seus filhos já estarão casados e com filhos e filhas e já somarão mais de 70 pessoas.
1. Narrativa Bíblia: Capítulos 25-36
O capítulo 37 narra as primeiras impressões acerca José, a partir de sua adolescência, seus sonhos aparentemente arrogantes, mas ao final proféticos, e a sua relação ruim com os seus irmãos mais velhos.
A situação se agrava, esses irmãos simulam a morte de José e o vendem como escravo.
O capítulo 38 é uma história inserida na história de José, sem relação direta, mostrando ainda comportamentos bem reprováveis, nesse caso, o comportamento de Judá, filho de Jacob.
O capítulo 39 narra a vida de José no Egito. Inicialmente como fiel mordomo de Potifar, importante funcionário do Faraó, mas ele será traído e jogado na prisão, ante a falsa acusação da mulher de Potifar.
Na prisão José se sobressai e ganha a confiança do carcereiro. Mais tarde, José interpreta os sonhos do padeiro e do copeiro de Faraó, tendo a sua interpretação se confirmado.
Os sonhos proféticos do Faraó o perturbam, quando então o copeiro-mor lembra de José como intérprete do seu sonho.
O capítulo 41 narra os sonhos de Faraó, o seu incômodo em desvendar o significado e a ação de José, que não apenas revela os sentidos dos sonhos, mas também aponta um inteligente plano para a grande crise que se avizinha. A inteligência de José faz uma mudança radical na vida da José, que deixa de ser prisioneiro e é alçado à condição de governador do Egito.
Os capítulos 42-45 narram o grande jogo de José. Premidos pela fome, conforme sonhou o Faraó, os irmãos de José vão comprar alimentos no Egito, sem saber que José o governador-geral. José então faz um jogo com eles, submete-os a testes, prova-os, assusta-os, quase uma tortura psicológica, mas no final o que José quer saber é se eles estão arrependidos do mal que lhe causaram.
Ao final, José se dá a conhecer, mostra a sua verdadeira identidade e lhes perdoa pelos erros passados.
O capítulo 46 narra a saída de Jacob de Canaã e sua mudança para o Egito, para lá viver em razão da fome na terra. Lá ele reencontra José (46, 28 e ss), tem uma audiência com Faraó (capítulo 47), conhecem a política agrária de José (47, 13 e ss).
No capítulo 48 Jacob adota os filhos de José, Manassés e Efraim.
O capítulo 49 narra a bênção patriarcal de Jacob (50, 3-27) e a morte de Jacob (50, 29-33).
O capítulo 50 narra os funerais de Jacob e a morte de José.
2. Análise do Texto: Capítulos 37-50
O texto dos capítulos 37-50 tem um protagonista único, José, traçando uma história praticamente linear e quase sem interrupções.
2.1. A preferência de Israel por José
Israel já idoso tem preferência clara e irrestrita por seus filhos José e Benjamin, ambos filhos de Raquel, a mulher que ele amava (29, 30). Eram os filhos de sua velhice, e sua preferência por José era clara, inclusive por meio de presentes (37, 3).
José era também rápido em contar ao seu pai os erros e descaminhos de seus irmãos mais velhos (37, 2).
A história vai mostrar um José fiel ao pai, fiel a Deus, confiante na providência de Deus, casto e obediente. Mas também um tanto sonhador e ingênuo, a ponto de sair por aí contando seus sonhos, dando uma impressão de arrogante, embora não o fosse, mas chegando ao ponto de provocar a ira dos irmãos (37, 5-8) e a repreensão de seu pai (37, 9-11).
Israel e seu irmão Esaú, já tinham experimentado esse erro de seus pais, pela preferência de um ou outro filho (25, 28). Agora, ele mesmo repete o erro de seus pais, em relação a José.
Claro que a sua situação era um pouco pior, pois tendo duas esposas e duas concubinas, sendo que todas quatro tinha filhos seus. Era natural um clima de discórdias e conflitos.
2.2. José vendido por seus irmãos como escravo
Enviado por seu pai, Israel, parte José ao encontro de seus irmãos que pastoreavam o rebanho da família. José, filho preferido de Israel (37, 3) e com um histórico de delator dos erros dos irmãos (37, 2), além de seus sonhos (37, 5-8; 9-11) aparentemente arrogantes, era ingênuo demais para desconfiar que essa viagem não terminaria bem.
A ideia de matá-lo (37, 21) já mostra que o ódio estava arraigado há tempos, mas Ruben, o irmão mais velho, talvez já com alguma maturidade, propôs uma alternativa – lançá-lo em uma cisterna – para que morresse de fome, mas sem a ação física direta dos irmãos. Ruben tem uma proposta dura apenas na aparência, pois pretendia libertá-lo mais tarde (37, 22).
Aceita a proposta de Ruben, José foi livre de morrer imediatamente, tendo sido lançado em uma cisterna sem água. Mas em um instante em que Ruben está fora, os irmãos o venderam como escravo a uma caravana de Ismaelitas, seus aparentados, descendentes de Ismael, filho de Abraão, que viajava para o Egito (37, 25-28), por 20 siclos de prata[1].
A túnica de José, presente especial de seu pai Isaac (37, 3) é recolhida pelos seus irmãos, embebida em sangue de um bode e levada a seu pai, montando assim, a cena de uma morte por um animal selvagem.
Com isso, apesar, do sofrimento do velho Israel, seus irmãos estariam “livres” da interferência de José em suas vidas.
Ruben, o irmão mais velho, que apresentou a alternativa de deixá-lo em uma cisterna vazia para libertá-lo mais tarde, desespera-se com a notícia de venda do irmão como escravo (37, 10). Todavia, diante da cena armada, não haveria mais o que fazer, e a notícia da falsa morte deveria ser dada ao pai deles, a Israel.
No Egito, os ismaelitas revendem José à casa de Potifar, eunuco e comandante da guarda de Faraó.
2.3. José como prefigura de Cristo
É inegável que essa narrativa aponta José como uma prefigura de Jesus, sendo várias as nuances entre uma história e outra.
Vejamos.
José é enviado pelo seu pai (37, 13), assim como Jesus também é enviado pelo Pai para os seus irmãos na terra de Israel (Lc 4, 18); os irmãos de José não o receberam como irmão (37, 18), assim como Jesus que também “veio para o que eram seus, mas o seus não o receberam” (Jo 1, 11); no processo de traição, Jesus é vendido por Judas Iscariotes por 30 siclos de prata (Mt 26, 15), enquanto José é vendido pelos seus irmãos por 20 siclos de prata; a venda de Jesus acaba por entrega-lo a uma nação estrangeira, que é Roma, enquanto a traição a José, acaba por entrega-lo a uma nação estrangeira, Egito.
No entanto, exatamente por ter sido vendido como escravo ao Egito, a conturbada vida de José o levará a salvar o mundo de uma grande fome. Nesse aspecto, salvará, inclusive, os seus próprios irmãos, que de algozes, passarão a ser alvo da ação benéfica e do amor de José; tal qual o Nosso Senhor, que, em razão da traição sofrida será levado à cruz, por meio da qual salvará o mundo.
3. A história de Judá e Tamar
A história de Judá e Tamar está inserida na história de José, sem, no entanto, ligar-se diretamente a ela. Judá é o quarto filho de Israel, filho de Lia, irmã de Raquel.
Judá se afasta da família e toma por esposa uma mulher chamada Sué e com ela passa a viver. Ela então tem três filhos, Her, Onã e Sela (38, 1-5).
Judá então toma uma mulher chamada Tamar para ser a esposa de seu filho Her. Logo, Her morre sem deixar filhos, ficando Tamar viúva. Judá chama seu segundo filho, Onã, para cumprir o costume do levirato, segundo o qual, morrendo um homem sem filhos, o irmão seguinte deve se casar com a cunhada viúva e ter filhos com ela, mas esses filhos serão do seu irmão falecido. Onã se casa com Tamar, mas não gera filhos com ela, pois pratica “coitus interruptus”, tendo Deus feito ele morrer. O terceiro irmão, Sela, era muito jovem para se casar com Tamar. Por essa razão, Judá manda que ela volte para a casa de sua família, até Sela ter idade para se casar (38, 6-11).
Quando chega a idade de Sela se casar com Tamar, Judá nada faz.
Judá então fica viúvo com a morte de Sué, tendo ido para a tosquia, a fim de se animar um pouco. Tamar fica sabendo e se veste de prostituta e se coloca no caminho de Judá. Diante disso, Judá a contrata como prostituta e não tendo dinheiro, deixa penhor o seu selo, o seu cordão e o seu cajado. Em dia certo e marcado ele traria a ela um cabrito e tomaria de volta os bens empenhados (38, 12-19).
Após o encontro, Tamar volta para a casa do seu pai.
Judá cumpriu a promessa e enviou um cabrito para pagamento e resgate do penhor, mas não encontrou a suposta prostituta, que na verdade era sua nora (38, 20-23).
O encontro furtivo entre Judá e a sua nora, que se disfarçou de prostituta, teve como consequência a gravidez dessa nora. E quando a notícia chega aos ouvidos de Judá, ele então propõe que ela seja castigada pelo adultério, violando a memória de seu filho morto, pois ela ainda estava sujeita à lei do levirato (38, 24-25). O castigo proposto era terrível, ser queimada viva (38, 24).
Diante da acusação, Tamar então se apresenta e diz: “Estou grávida do homem a quem pertence esses bens e apresenta os bens deixados por Judá como penhor pelo pagamento do ato de prostituição (38, 25).
Judá então reconhece que ele próprio não cumprira a lei do levirato, não dando seu filho Sela como esposo de Tamar, razão pela qual desiste de castigá-la e também não mais manteve qualquer contato com ela (38, 24-26).
Farés, um dos filhos de Judá e de sua nora Tamar, chamado Farés, é um dos antepassados de Jesus Cristo, segundo Mateus 1, 3.
4. José na cada de Potifar
No Egito, José fora adquirido como escravo por um alto oficial do Faraó do seu tempo (39, 1-6). Potifar era o comandante da guarda palaciana, portanto, uma pessoa de total confiança da realeza. No desempenho zeloso de suas tarefas na casa de Potifar, Deus vai abençoar José, a ponto de se tornar uma espécie de mordomo geral e administrador não apenas da casa de Potifar, mas de todos os seus bens.
José já é a quarta geração, desde Abraão, o processo de construção de um povo santo é complexo e difícil, os erros de Abraão, Isaac, Jacob, agora Israel, demonstram essa dificuldade. No entanto, a ação de Deus começa a dar resultado, nem tudo está perdido, pois apesar de erros, esses patriarcas prosperaram no seguimento de Deus, e José, que é a quarta geração seguirá esse caminho.
Assim, sendo José esse homem que caminha com Deus, a sua obra, o seu trabalho, as suas ações, enfim, tudo o que ele fizer prosperará, como dirá Davi, 1.000 anos depois de José, no Salmo 1, 3.
4.1. A esposa de Potifar
O Gênesis não menciona o nome da esposa de Potifar, uma mulher sedutora, infiel e lasciva. O texto bíblico é claro em dizer que José era um homem atraente, tinha porte físico e um belo rosto. A essas feições atraentes, somam-se as virtudes, o trabalho bem feito, o respeito, a educação e modo austero de se portar. Tudo isso fazia de José um homem atraente.
A esposa de Potifar então não mede esforços e tenta todo custo seduzir José para atos sexuais ilegítimos, pois ele solteiro e ela casada com Portifar, com propostas claras, diretas e indene de dúvidas: “Dorme comigo!” (39, 7b).
As propostas eram severamente rejeitadas por José, e tal rejeição se dava por dois aspectos: a uma, pelo pecado em si; a duas, pela responsabilidade pessoal dele diante de seu senhor. Com efeito, para José, a primeira questão é o pecado do ato sexual ilegítimo em si. Todavia, a proposta continha um ato de extrema vilania, dada a confiança que Potifar depositava nele (39, 8-9).
A mulher de Potifar entra em desespero e profunda frustração. Como pode ser ela rejeitada por um escravo, um ser inferior, a quem ela, uma mulher da nobreza do Egito, queria se entregar em prazeres? A rejeição levou a mulher de Potifar a canalizar para o ódio e a maldade todo o desejo que ela tinha por José.
Exatamente, diante das recusas constantes de José, ela prefere caluniá-lo, acusando-o de uma tentativa de estupro (37, 11-20).
José vai à casa para algum de seus afazeres quando é mais uma vez assediado por sua Senhora, com a proposta de sempre: “Dorme comigo!” (39, 12). Diante da recusa de José ela agarra uma peça de sua roupa, ele então se desvencilhando da mulher, corre e ela fica com a peça de roupa em sua mão. Diante de mais uma investida frustrada ela grita pelos demais empregados, acusando José de uma tentativa de abuso sexual (39, 13-15). Adiante, ela vai sustentar a mentira e falsa acusação contra José, diante do seu marido (39, 16-19), que, profundamente irritado, manda José para a prisão (39, 20).
José nesse episódio vivencia uma profunda provação de sua fé e de seu caráter. Exatamente por ser fiel a Deus, à sua consciência e por respeitar o seu senhor nas suas atividades laborais é que ele será preso.
O texto bíblico não menciona quanto tempo José trabalhou na casa de Potifar. No entanto, o fato é que Potifar percebeu que o seu patrimônio cresceu sob a gestão de José, a ponto de as responsabilidades irem aumentando até que ele geria toda a casa. Tal constatação permite inferir que não foram meses de trabalho, mas provavelmente alguns anos.
5. José na prisão
A prisão não abala o coração de José, não o desmonta de suas virtudes e nem o estimula a abandonar os caminhos de Deus. Novamente ele mantém o controle de sua razão, a correção dos seus atos e seu compromisso com Deus.
E isso fará de José um prisioneiro exemplar, a ponto de o diretor da prisão confiar em José e fazer dele uma espécie de administrador informal da prisão (39, 20b-23). Novamente aqui vemos a certeza daquilo que será dito do homem justo por Davi, 1.000 anos depois de José (Salmo 1, 3).
5.1. José interpreta os sonhos dos oficiais de Faraó
Durante o seu tempo de prisão, José conhece dois ex-oficiais de Faraó, o copeiro-mor e o padeiro-mor, que caíram em desgraça e foram parar no cárcere (40, 1-4). Não é de todo absurdo pensar que esses dois ex-oficiais passassem a ter alguma amizade com José, ex-mordomo geral de Potifar, com efeito, esses três eram presos que se diferenciavam, por seu passado e serviços, dos presos comuns (40, 4).
Certa noite os dois sonham misteriosamente, cada um desempenhando o seu ofício diante de Faraó, e no dia seguinte, passam o tempo perturbados com aqueles sonhos (40, 5-8).
O copeiro sonhou que estava diante de uma videira, donde cresciam três cachos de uva, tendo ele à mão a taça de Faraó. Ele então espremia na taça as uvas e entregava-a ao Faraó. José entendeu tratar-se de três dias, representados pelos três cachos de uva, e o fato de que ele espremia as uvas e entregava a taça ao Faraó significava que ele seria, nesses três dias, absolvido e reabilitado em seu cargo (40, 9-13).
Diante da interpretação benéfica, José pede ao copeiro-mor que se lembre dele, preso injustamente (40, 14-15).
O padeiro-mor então conta o seu sonho. Ele sonhou que tinha em sua cabeça três cestos, contendo bolos e as aves do céu comiam os bolos que estavam na terceira cesta. Segundo José os três cestos eram três dias, e as aves do céu, que comiam o conteúdo no terceiro cesto, significava que o padeiro seria condenado à morte em três dias por enforcamento e as aves do céu comerão a sua cabeça (40, 16-19).
De fato, no terceiro dia tudo se passou como interpretado por José. Em um banquete para festejar o aniversário do Faraó, o copeiro-mor foi julgado inocente e reabilitado; enquanto o padeiro-mor foi julgado e condenado à morte (40, 20-22).
No entanto, o copeiro-mor esqueceu-se de interceder por José (40, 23).
5.2. Os sonhos de Faraó e a interpretação de José
O texto do capítulo 41, 1-36 narra os sonhos de Faraó e a interpretação que José lhes deu, bem como a solução apresentada para a crise gerada pela efetivação dos fatos descritos nos sonhos.
No primeiro sonho, o Faraó, estando às margens do Nilo, percebe que pastam às margens do rio sete belas vacas, tenras e bem nutridas. Logo saem do Nilo sete vacas incrivelmente magras e debilitadas, que devoram as sete vacas tenras e fortes. Então ele acorda.
Após acordar com esse sonho, o Faraó volta a dormir e tem outro sonho, quando então ele vê sete espigas que subiam de uma mesma haste da planta, tenras e boas; mas então nascem atrás delas sete espigas feias e murchas, que de repente devoram as espigas boas e sadias (41, 1-7).
Pela manhã, o Faraó está perturbado com os seus sonhos. A situação piora, pois os seus conselheiros, assistentes, adivinhos e magos não conseguem entender ou lhe apresentar uma interpretação clara para tão perturbadores sonhos (41, 8-10).
O copeiro-mor então se lembra de José e de como ele interpretara corretamente o seu sonho e o sonho do padeiro-mor (41, 11-13).
Diante disso, o Faraó manda trazer José a sua presença e conta-lhe o sonho (41, 14-16).
O Faraó ao contar os sonhos a José e acrescenta um dado, a saber, tanto as vacas magras, quanto as espigas mirradas, continuavam magras e mirradas, respectivamente, mesmo depois de devorar as vacas gordas e as espigas tenras (41, 17-24).
José então, inspirado por Deus, interpreta os sonhos como um único sonho, uma espécie de revelação de Deus ao Faraó. Segundo José as sete vacas gordas e as sete espigas tenras assinalam sete anos de fartura nas colheitas do Egito; enquanto as sete vacas magras e as sete espigas mirradas assinalam os sete anos de péssimas colheitas e falta de alimentos, que seguirão os sete anos de fartura (41, 18-32).
5.3. A solução de José e sua exaltação
José não se limita a interpretar os sonhos de Faraó. José vai adiante, e depois de expor o problema, apresenta um plano de organização de funções públicas, para o enfrentamento do período de fartura, marcado pelas vacas gordas e espigas tenras, seguido do período de escassez, marcado pelas vacas magras e espigas mirradas (41, 33-36).
A ideia é constituir um administrador-geral e um conjunto de funcionários, para tributarem toda a produção em 20%, que devem ser guardados em silos, nas diversas cidades do Egito, ao longo dos sete anos de fartura; para então serem prudentemente consumidos no período de escassez (41, 33-36).
A presteza na interpretação, bem como a diligente apresentação de um plano de solução da crise que se avizinhava, empolgou o Faraó, que viu em José mais do que um intérprete de sonhos, mas sim, um grande gestor, capaz, enérgico e de visão. José então passa à condição de vice-Rei do Egito, pelo menos no que diz respeito à gestão dos alimentos, tendo somente acima dele o próprio Faraó (41, 37-45).
Além dessa exaltação funcional extraordinária, que fez José deixar a prisão para se tornar a maior autoridade civil do Egito, o Faraó mudou o seu nome para Safanet-Fanec, em algumas traduções Zafenate-Paneia. Existem algumas discussões sobre o significado desse nome. Para alguns significa “Deus Salva, Ele vive”, para outros seriam uma alusão a “Salvador do mundo”, sendo que em ambos os casos, esse novo nome de José reforça aquela condição dele como prefigura de Cristo.
Faraó também dá a José como esposa, a filha de Potifar, sacerdote de On, chamada Asenet (41, 45). Esse Potifar é outro, nada tendo a ver com aquele primeiro, que fora dono de José (39, 1-6). Quanto a esse novo Potifar, trata-se do sacerdote de On (Heliópolis), que era um importante centro religioso do culto ao sol. Com isso quis o autor do Gênesis mostrar que José foi elevado ao mais alto nível social e econômico da sociedade egípcia.
José tinha então 30 anos, quando interpretou os sonhos do Faraó (41, 46). Considerando que o texto de 37, 2, quando começa a sua história, José tinha 17 anos, toda a saga de sua venda como escravo, os anos na casa de Potifar e os anos na prisão foram um total de 13 anos.
José então casado, tem dois filhos, a quem chamou Manassés e Efraim (41, 50-52).
E vieram os anos de fartura, quando os planos de José foram implementados por ele mesmo. Em seguida, vieram os tempos de escassez, quando o Egito tinha não apenas alimentos para os seus, como também tinha um grande excedente que podia ser vendido a todos os povos que o procuravam (41, 53-57).
6. Os irmãos de José descem ao Egito por duas vezes e José os reconhece
Os capítulos 42-45 narram um conjunto de histórias em torno das viagens que os irmãos de José fazem ao Egito para comprar alimentos, como são recebidos por José, como serão tratados e o desenlace final.
6.1. Análise da situação
É preciso aqui relembrar a vilania, a maldade a perversidade dos irmãos de José. Sim, no passado, eles tencionaram matar o seu irmão mais novo, um adolescente de 17 anos.
E mesmo quando desistem de matá-lo, a solução ainda é igualmente cruel, vender um irmão mais novo, ainda adolescente, como escravo, e ainda, levar uma falsa prova de morte para maior sofrimento do velho Israel, já idoso e tendo de conviver com a ideia de que seu filho amado fora devorado por uma fera.
Todas as vicissitudes pelas quais José passou, como a traição ao ser jogado na cisterna, a vida de escravo, a acusação falsa de crime na casa de Potifar, os seus anos da prisão, tudo isso se deveu ao ato insano de seus irmãos.
Pois bem, a situação agora mudou drasticamente. Aquele irmão odiado, impertinente, desprezado e castigado de forma vil e impiedosa dera a volta por cima de uma forma absolutamente impensável. Sim, José o desprezado e escravizado adolescente de 17 anos é agora o governador, o vice-Rei da maior potência política e econômica da época.
Claro que se José se desse a conhecer de imediato, os seus irmãos cairiam aos seus pés aos prantos, pediriam perdão por todos os erros cometidos para com ele. Com efeito, José precisava investigar as mentes, as almas, as relações daqueles homens, que há quase 30 anos perpetraram toda a sorte de maldade com ele.
Enfim, José precisava saber se estavam arrependidos.
E nessas duas viagens, tal qual descrito nesses três capítulos José vai usar de sua condição de homem poderoso, administrador do Egito, dotado de autoridade e de meios diversos para avaliar até que ponto aqueles homens, seus irmãos, se emendaram em face do que fizeram.
6.2. Primeira viagem dos irmãos de José ao Egito
A primeira viagem dos irmãos de José ao Egito, em razão da fome na terra, está descrita em Gênesis 42.
Dos doze filhos de Israel, José está no Egito como governador sem que ninguém saiba, e dos onze, dez viajam ao Egito para comprar mantimentos. Israel não permitiu que Benjamin, o filho mais novo, fosse ao Egito, pois tinha medo de algum mal lhe sucedesse (42, 1-4).
Desceram ao Egito (42, 5-9), tendo José lhes reconhecido, mas eles não o reconheceram, quando então foram interrogados (42, 7). José joga com eles, acusam-lhes de espionagem (42, 8), quando então eles falaram a José da família, de seu pai e se mostraram arrependidos (42, 12-13, 18-22).
José então exigiu que lhes trouxesse Benjamin, o irmão mais novo, para ver o que fariam, diante da possibilidade de causar um mal ao irmão mais novo, assim como fizeram com ele (42, 18-20).
Esse teatro terrível, mas necessário, realizado por José, para por à prova os seus irmãos, é marcado por um grande sofrimento dele, que por diversas vezes tem de sair da presença dos irmãos para chorar escondido (42, 23).
Simeão fica preso no Egito, como garantia de que trarão Benjamin (42, 24).
Os irmãos de José retornam a Canaã sem Simeão, mas curiosamente descobrem que o dinheiro com que pagaram os mantimentos foram devolvidos às escondidas, nos sacos de cereais, sob ordem de José.
Retornando a Canaã relatam tudo a Israel, inclusive a exigência de que levassem Benjamin na viagem seguinte. O velho Israel entra em desespero, pois José está morto, pensa ele, Simeão está detido no Egito, e agora querem levar o filho mais novo, Benjamin, com efeito, é muito sofrimento para o velho e cansado coração de Israel. Ele não admite a ida de Benjamin em uma próxima viagem (42, 25-37).
6.3. A segunda viagem dos irmãos de José ao Egito e a prova final
No entanto, os alimentos acabaram e uma nova compra no Egito se faz necessária. Os filhos de Israel lembram que, segundo o Governador do Egito, caso Benjamin não vá, eles sequer serão atendidos e não terão alimentos a serem comprados (43, 1-7).
Judá se compromete e se responsabiliza diante do pai pela vida do jovem Benjamin (43, 8-10). O velho Israel então concorda (43, 11-14).
Ao chegarem ao Egito, José os encaminha ao lugar onde vive e manda lhes preparar um banquete. Toda a cerimônia de recepção, as ordens e os movimentos de empregados amedrontam os seus irmãos (43, 15-18). Mencionam o episódio do dinheiro devolvido, propõe a contra devolução, no que não são atendidos, fazendo o temor aumentar.
José então faz um encontro amigável, pergunta pelo pai daqueles homens e recebe a resposta de que ele está bem. José se emociona ao ver seu irmão mais novo, Benjamin, a ponto de se retirar para chorar de tanta emoção, retornando depois para a refeição.
José então determina que novamente devolvam o dinheiro deles juntamente com os mantimentos. Mais do que isso, José prepara-lhes uma armadilha, mandando colocar a sua taça principal dentre os objetos de Benjamin (43, 1-5).
Quanto partiram, José manda que sejam alcançados e os acusa de furto, apesar de terem sido tão bem tratados. Então abrem os sacos de mantimentos, quando se percebe ali o dinheiro do pagamento, e mais, dentre os bens de Benjamin é encontrada a taça de José, o Governador do Egito (43, 6-13).
José então apresenta um veredito. Benjamin que teria furtado a sua taça ficará como seu escravo no Egito, enquanto os outros dez, inclusive Simeão, poderão voltar à terra de Canaã (43, 14-17).
Essa armação de José é evidentemente um teste, muito semelhante à situação que ele vivera mais de 20 anos antes. José queria saber como eles iriam dar a notícia a Israel do infortúnio de Benjamin, assim como fizeram com ele próprio, quando simularam sem dó uma falsa morte para encobrir o fato de o terem vendido como escravo para o Egito.
Judá então faz uma intervenção dramática acerca de toda a situação que viveram, desde a primeira viagem, o sofrimento do pai Israel pela “morte” de José, irmão de Benjamin, e a impossibilidade de seu velho pai Israel ter de conviver com a perda de mais um filho.
Ao final, Judá se oferece como escravo em lugar de Benjamin, para que este volte são e salvo a Israel seu pai.
Com isso José percebeu que seus irmãos estavam arrependidos do mal que lhe fizeram na juventude. Com efeito, a possibilidade de se oferecer como escravo para salvar a liberdade de Benjamin e não fazer sofrer o seu pai Israel, tal qual sofrera antes, é a prova do arrependimento (44, 18-34).
7. José se dá a conhecer a seus irmãos
Diante dessa situação dramática, José aos prantos se dá a conhecer aos seus irmãos, e prantos tão altos que todos ouviram e a notícia chegou ao Faraó. A cena da autorrevelação é dramática: “Eu sou José! Vive ainda meu pai?” (45, 1-8)
Os seus irmãos ficaram atônitos e quase não puderam responder, pois um misto de alegria, espanto, arrependimento, tristeza e felicidade intensa se apoderou de todos eles.
Esse encontro é marcado, sobretudo, pelo perdão que José oferece aos seus irmãos, pelo sepultamento do passado, pelo enterrar das mágoas e pela vontade de reconstruir a família de Israel.
Essas duas viagens ocorrem nos dois primeiros anos da escassez, faltando ainda 5 anos de tempos ruins (45, 6). Diante disso, José vê como melhor solução a descida de toda a família ao Egito, para ali viverem por um tempo, sob a sua proteção, na fértil terra de Gessen, no delta do rio Nilo (45, 10).
José então ordena os seus irmãos que busquem o seu pai em Canaã e toda a família venham todos para o Egito (45, 9-13).
Depois disso, José abraça e beija afetuosamente o seu jovem irmão Benjamin, filho de sua mãe Raquel. Depois abraça e beija todos os seus irmãos (45, 14-15).
Nessa época, em razão de todos os seus dotes e trabalhos, José continuava a gozar de imenso prestígio diante do Faraó, que aprova cabalmente os planos de José, fazendo o Egito acolher a sua família (45, 16-20).
Os irmãos de José retornam com todas essas notícias à Canaã com presentes, mantimentos, recursos e alegrias (45, 21-28).
7.1. A ida de Israel para o Egito
Então Israel e todos os seus familiares ajuntaram todos os seus bens e rebanhos e desceram ao Egito, quando então Deus lhe falou que nada temesse, mas alertou que aquela ida ao Egito não seria definitiva, pois os descendentes de Abraão haveriam de retornar à terra de Canaã (46, 1-7).
O texto do capítulo 46, 8-26 apresenta a família completa de Israel que descera ao Egito, sendo mais de 70 pessoas, sem contar as mulheres dos filhos de Israel (46, 26).
O velho Israel chega na terra de Gessen para ali viver, quando então o seu filho José vai ao seu encontro, pondo fim a um sofrimento de quase trinta anos (28-30).
O prestígio de José é tal que o próprio Faraó concede uma audiência a Israel e com ele trata de forma amistosa e receptiva, confirmando a terra de Gessen para que ali possam viver (46, 5b-12).
8. A política agrária de José
A fome continua, quando então as pessoas não têm mais sequer dinheiro para comprar mantimentos. José então propõe que eles paguem os alimentos com as suas terras, gerando assim uma publicização de todas as terras do Egito, que passam a pertencer ao Estado.
Diante disso José, mantendo a propriedade das terras nas mãos do Faraó, entrega as terras aos seus antigos proprietários em regime de parceria, podendo cada um cultivar a terra, mas deverão ao Faraó 1/5 de toda a sua colheita (47, 13-26).
9. A bênção de Jacob, sua morte e funerais
Como de costume nas patriarquias, estando Jacob já idoso, proferiu a sua bênção patriarcal aos seus filhos, anunciando ali a cada filho as suas características (49, 1-28).
Jacob então pede que seu corpo seja sepultado no mesmo lugar onde estão sepultados os seus pais, diante de Mambré em Canaã. Ditas essas instruções, Jacob faleceu farto de dias e bênçãos (49, 29-33).
José deu ordem para que o corpo de seu pai fosse embalsamado, tendo todos os seus filhos chorado por dias e dias. Após toda essa preparação, Jacob foi levado ao lugar determinado por eles e ali foi sepultado (50, 1-14).
Uma pequena crise de temor se abate sobre os irmãos de José após a morte de Israel. Eles temiam que o perdão de José somente subsistiria enquanto o seu pai Israel existisse. Diante da morte do pai, temeram que José os reduzisse à condição de escravo. José se entristece e reafirma o seu perdão e a altivez dos planos de Deus, mesmo quando as ações humanas são desacertadas (50, 15-21).
Ao final, José avisa aos seus que Deus lhes fará voltar um dia à terra de Canaã e da ordens específicas acerca do traslado de seu corpo para sepultamento junto do corpo de seu pai (50, 22-25). E assim foi feito. Tendo José falecido aos 110 anos, seu corpo foi embalsamado e guardado em um sarcófago no Egito (50, 26).
Gabriel Campos
Brasília – DF, 28 de janeiro de 2022
Memória de Santo Tomás de Aquino
[1] O Siclo era uma medida de peso e correspondia a 11,4 gramas. José foi vendido por 20 siclos, o equivalente a 228 gramas de prata. Na cotação de hoje, janeiro de 2022, José foi vendido por aproximadamente R$ 1.300,00 (um mil e trezentos reais).