1. O TEMPO
Desde muito cedo, o ser humano percebeu que todos os atos de sua vida, relevantes ou irrelevantes, importantes ou banais, felizes ou infelizes aconteciam em um determinado instante, que imediatamente era sucedido por outro instante, deixando aquele de existir, não podendo mais ser visto, sentido ou percebido.
Assim, por exemplo, o instante exato em que o caçador cravou a lança na sua caça, era sucedido pelo instante seguinte, quando o animal cai ao chão; sendo esse instante sucedido pelo instante seguinte, quando o animal morre; que por sua vez é sucedido pelo instante seguinte, quando ele, o caçador e seus companheiros, devem carregar o corpo do animal caçado.
Então desde cedo percebemos que a vida é uma sucessão de instantes, organizados de tal forma que temos apenas o instante presente, pois o que passou, já se foi, e o próximo ainda não chegou. Essa sucessão de instantes forma o dia, e a sucessão dos dias forma o ano, e a sucessão dos anos forma a existência de cada um.
A esse fenômeno deu-se o nome de tempo.
A definição de tempo tem sido um dos maiores desafios da filosofia e da física desde a antiguidade. Isso se deu quando percebemos que nada na natureza está em estado estático, antes, tudo está em movimento, os dias, as noites, as tempestades, e hoje sabemos, os corpos celestes como a Terra, os planetas e seus satélites, as galáxias, o universo, e por fim, a própria vida humana do nascimento até a morte[1].
Não demorou muito “tempo”, e os homens começaram a medir o tempo, seja em relação ao dia e noite, dividindo esses períodos em períodos menores chamados horas, minutos e segundos, bem como, somando esses períodos de dias a dias, formando semana, meses e anos, tomando, por exemplo, por fundamento a observação da relação entre a Terra e o Sol e/ou entre a Terra e a Lua.
Os gregos conheciam duas palavras principais para definir o tempo: Chronos e Kairós, em razão de sua mitologia.
Chronos é a concepção grega para o tempo cronológico, assim entendido, como a sucessão de dias, semanas, meses e anos; enquanto Kairós se referia ao tempo oportuno ideal, aquele momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece.
Como o cristianismo se desenvolveu inicialmente sob forte influência grega, logo o Chronos passou a identificar o “tempo do homem” em sua condição de mero devir; ao passo em que o Kairós passou a identificar o “tempo de Deus”, aquele momento especial em que algo ocorre por expressa e insondável vontade de Deus Todo-poderoso.
Após essa definição de tempo dada pelo pensamento grego, tivemos inúmeras outras, que não vale a pena trazer a comentários aqui. Todavia, apenas por curiosidade, trago a definição de tempo, no caso, o segundo, determinado pela Conferência Geral de Pesos e Medidas. Em 1967 a Conferência[2] definiu o tempo de um segundo como “a duração de 9.192.631.770 (nove bilhões, cento e noventa e dois milhões seiscentos e trinta um mil setecentos e setenta) períodos da radiação correspondente à transição entre dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de Césio 133”.
Na busca por uma definição de tempo, fora das discussões filosóficas e físicas, encontramos aquela apresentada pelo Pe. José Aldázabal[3], SDB, que afirmou: “o tempo é, com o espaço, uma das coordenadas em que se inscreve o ser e o agir humanos. É uma realidade, misteriosa, inapreensível”. Com outras palavras, a nossa vida, a nossa existência e o nosso agir acontecem e se realizam sob o esquadro dessas duas coordenadas o tempo e o espaço.
Por óbvio que, sendo o tempo sendo criatura de Deus (Gn 1, 14-19), o próprio Deus seu criador não lhe está sujeito, pois ele é o criador e senhor do tempo e da eternidade. Nesse sentido, poetiza o salmista por meio do Salmo 18, dizendo:
1. Ao mestre de canto. Salmo de Davi.
2. Narram os céus a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos.
3. O dia ao outro transmite essa mensagem, e uma noite à outra a repete.
4. Não é uma língua nem são palavras, cujo sentido não se perceba,
5. Porque por toda a terra se espalha o seu ruído, e até os confins do mundo a sua voz; aí armou Deus para o sol uma tenda.
6. E este, qual esposo que sai do seu tálamo, exulta, como um gigante, a percorrer seu caminho.
7. Sai de um extremo do céu, e no outro termina o seu curso; nada se furta ao seu calor.
Portanto, é pelo contrário, é o tempo que está sujeito a Deus, valendo lembrar aqui que por dois momentos na história de Israel, Deus interferiu diretamente no processo do devir temporal (Js 10, 12-14: II Rs 20, 9-11).
Deus está fora da relação espaço-tempo, o que nos ensina São Pedro, um pescador analfabeto, dizendo: “um dia para o Senhor é como mil anos e mil anos é como um dia” (2 Pedro 3, 8).
No âmbito da filosofia cristã, foi Santo Agostinho[4] quem melhor refletiu sobre o tempo. O Bispo de Hipona afirmando que Deus é o criador de todas as coisas, é, inclusive, o criador do tempo, portanto, a eternidade antes da criação não era medida por dias, meses e anos, pois estes somente passaram a existir com o tempo, quando Deus o criou[5]; de igual modo pode-se dizer da eternidade, dita por nós, futura, pois lá o tempo será um instante eterno e não precisará e nem poderá mais ser contado ou medido.
Separado de Deus pelo pecado, encontra-se o homem preso às duas coordenadas que limitam sua vida, seus sentimentos, suas ações e existência, a saber, o espaço e o tempo. E uma vez vivendo entre eles, com o progresso do seu conhecimento, o homem passou a medir e contar o tempo.
2. CALENDÁRIOS
Criou-se dessa forma o calendário, como um sistema de contagem do tempo, mediante o agrupamento dos dias em semanas, meses e ano, a fim de atender às necessidades civis, e muitas vezes, religiosas de um certo povo. O termo calendário vem do latim calendarium, que significa livro de registro, que por sua vez, deriva de calendae que indicava o primeiro dia de cada mês em Roma.
Diversos povos compuseram seus calendários baseados na observação do movimento da lua, calendários lunares; na observação do movimento do sol, calendários solares; baseados nos movimentos do sol e da lua, calendários lunissolares, ou ainda, calendários arbitrários, como, por exemplo, o calendário revolucionário francês, baseado no clima e no evento político Revolução Francesa, adotado na França entre 1792 e 1800.
No mundo ocidental, tivemos por séculos a prevalência do Calendário Juliano, criado por Sosígenes de Alexandria, em 46 a.C., assim batizado em homenagem a Júlio Cesar. Atualmente nos valemos do Calendário Gregoriano, instituído pelo Papa Gregório XIII, em 1582, por meio da Bula Inter Gravíssimas.
Em quase todo o mundo moderno usa-se o Calendário Gregoriano.
Com o desenvolvimento da sociedade e a multiplicação de suas múltiplas facetas, percebeu-se logo que o tempo de um ano, instituído pelo Calendário Gregoriano, correspondendo ao período de um movimento translação da Terra em torno do Sol, não pode ser imposto a todas as áreas da vida humana e da sociedade.
Dessa forma, o Calendário Gregoriano, passou a ser chamado de Calendário Civil, marcando o tempo oficial, enquanto ao seu lado surgiram outros Calendários, que marcavam tempos específicos de certas categorias de pessoas ou interesses, como por exemplo, o calendário escolar, que marca o tempo do período letivo; o calendário fiscal, que marca o período do exercício de um ano de arrecadação de impostos e de exercício do orçamento público de um pessoa estatal; o ano ou calendário judiciário, que marca o período de funcionamento regular de todos os órgãos do Judiciário de um dado país; o ano ou calendário legislativo, que marca o período de funcionamento regular do Poder Legislativo, dentro do calendário civil; o calendário vacinal, que marca o tempo e as épocas de administração de vacinas e suas respectivas campanhas.
Em nenhum momento esses “calendários especiais” precisam vincular-se diretamente ao calendário civil, podendo ou não serem coincidentes em seus termos.
3. CALENDÁRIO OU ANO LITÚRGICO
A Santa Igreja, tendo em vista o bem do povo de Deus, e para facilitar a perfeita vivência de todas as etapas da vida de Cristo por parte dos fiéis, e ainda, para enriquecer essa catequese, instituiu um Calendário ou Ano Litúrgico que transcorre dentro do ano civil, mas sem coincidir com esse em todos os seus termos.
O TEMPO LITÚRGICO
1163. «A santa Mãe Igreja considera seu dever celebrar com uma comemoração sagrada, em determinados dias do ano, a obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a que chamou Domingo, celebra a memória da ressurreição do Senhor, como a celebra também uma vez no ano, na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua bem-aventurada paixão. E distribui todo o mistério de Cristo pelo decorrer do ano […]. Comemorando assim os mistérios da Redenção, ela abre aos fiéis as riquezas das virtudes e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar de algum modo presentes a todos os tempos, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham da graça da salvação» (38).
O ano ou calendário litúrgico é o período de 12 (doze) meses nos quais a Igreja realiza o conjunto de celebrações do mistério de Cristo, de tal forma que o fiel indo frequentemente às missas dominicais durante todo o ano litúrgico, ele acabará por vivenciar toda a vida de Cristo, desde a sua concepção (Is 7, 14) até a conclusão final de sua obra, quando sagrado Rei do Universo (Fp 2, 10-11).
A ideia de realizar festas e celebrações litúrgicas ao longo do ano é uma herança judaica. Lemos o princípio desse mandamento em Lv 23, 1-5:
1. Estas são as festas fixas de Jeová, santas convocações que proclamareis no seu tempo determinado. 2. No primeiro mês, aos quatorze dias do mês, à tardinha, é a Páscoa de Jeová. 3. Aos quinze dias do mesmo mês é a festa dos pães asmos de Jeová; sete dias comereis pães asmos. 4. No primeiro dia tereis uma santa convocação; não fareis obra alguma servil. 5. Mas por sete dias oferecereis uma oferta queimada a Jeová; no sétimo dia haverá uma santa convocação; não fareis obra alguma servil.
Uma vez consolidada a missão de Cristo, com sua paixão, morte e ressurreição, os discípulos entenderam que as prescrições celebrativas do Antigo Testamento tinha uma razão pedagógica, e por tal situação, passaram a festejar tão somente a Paixão de Cristo, por meio da Missa[6], que passou a ser celebrada no primeiro dia da semana, dia em que Jesus ressuscitou (At 20, 7). Tem início aí o calendário litúrgico, com a festa dominical, a Páscoa semanal no domingo.
A partir de então, lentamente começou a Igreja a organizar as solenidades e festas, desenvolvendo uma liturgia ligada aos dias sagrados, até que por volta dos séculos VII e VIII assumiu a forma atual[7]. Já a ideia de desvincular o ano litúrgico do ano civil, para começar o primeiro com advento, como tempo de preparação para o Natal, surgiu no século X, generalizando por toda a Igreja já no século XII[8].
Atualmente, a matéria está regulamentada pela Constituição Dogmática Sacrossanto Concílio sobre a Liturgia, documento promulgado pelo Papa São Paulo VI em 04 de dezembro de 1963, em seus parágrafos 102-111.
Em seu parágrafo 102 a Sacrossanto Concílio dispõe que:
102. A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a que chamou domingo, celebra a da Ressurreição do Senhor, como a celebra também uma vez no ano na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua Paixão. Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor. Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham de graça.
No texto do parágrafo 102 da Sacrossanto Concílio, a Igreja deixa clara a intenção e finalidade do Ano ou Calendário Litúrgico: Distribuir o mistério de Cristo pelo correr do ano… de tal modo que o fiel indo à Missa todos os domingos do Ano Litúrgico, ele acaba por vivenciar toda a vida e obra de Nosso Senhor Jesus Cristo.
4. CONCLUSÃO
Como você pode observar, o fenômeno do tempo e sua divisão e contagem, sendo apenas um fenômeno físico e cultural, foi aproveitado pela Santa Igreja para nele, no tempo, realizar as celebrações, solenidades, festas e memórias de tal modo que o ano deixa de ser um simples devir dos dias, semanas e meses, passando a ser um período rico de vivência da fé católica.
Gabriel Campos
Brasília – DF, 07 de dezembro de 2021.
Memória de Santo Ambrósio de Milão, Bispo, Santo e Doutor da Igreja.
[1] É bem conhecida a proposição do filósofo Pré-Socrático Heráclito de Éfeso: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio duas, pois na segunda vez, o rio já não é mais o mesmo, nem tão pouco o homem”.
[2] Sistema Internacional de Pesos e Medidas – Inmetro (Consultado em 06/12/2021).
[3] ALDÁZABAL, SDB, José. Vocabulário básico de liturgia. São Paulo: Paulinas, 2013, Verbete: “Tempo”, p. 367.
[4] Aurélio Agostinho de Hipona (354-430), Bispo, Santo e Doutor da Igreja.
[5] Santo Agostinho. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997, p.341.
[6] RÉUS, Pe. João Batista. Curso de liturgia. São Paulo: Cultor de Livros, 2018, p. 150.
[7] Idem, p. 151.
[8] Idem, p. 152.