INTRODUÇÃO
O Livro de Êxodo é o segundo livro da Bíblia e compõe com os livros de Gênesis, Levítico, Números e Deuteronômio um grande e única obra denominada Pentatêuco, também chamado de Torá.
1. Tema Central do Livro do Êxodo
O Livro do Êxodo tem três temas centrais, a saber, (i) a saída do Egito, onde viveram por mais de 400 anos, em direção à terra de Canaã, tratando-se ali de um verdadeiro êxodo, daí o nome do livro, Êxodo; (ii) a caminhada pelo deserto por 40 anos; (iii) a aliança no Sinai, que marca o início da construção de Israel, quando então, esse povo, outrora escravizado, começará um longo processo de reconstrução cultural, religiosa e legal.
2. Autoria
Existe uma antiga tradição que atribui a Moisés, o líder hebreu que retira o povo do Egito e o leva à Canaã, a autoria do Êxodo. As razões dessa afirmação se devem ao fato de Moisés ter trazido do monte Sinai as tábuas da Lei escritas e de alguns trechos se referirem à Lei como escrita por Moisés, como é o caso de Êxodo 24, 4. Não é impossível que Moisés tenha escrito o Décalogo (Dez Mandamentos) e alguma outra parte adjacente, por assim dizer, o núcleo da legislação, mas não existem outras indicações de que ele efetivamente tenha escrito o Livro do Êxodo.
Teólogos biblistas no final do século XIX construíram uma teoria sobre a autoria dos cinco livros que compõe o Pentatêuco, partindo da análise dos textos, da gramática hebraica e do comparativo dos diversos textos.
Segundo esses estudiosos os cinco primeiros livros da Bíblica são o resultado de quatro documentos diferentes, escritos por quatro pessoas ou tradições diversas, mas bem depois de Moisés, que viveu no século XIII a.C.
Essas quatro tradições são conhecidas como Javista, que usa o nome Iahweh, que teria sido escrito por volta do século IX a.C. em Judá (uma das tribos de Israel); e outra de tradição denominada Eloísta, que usa o nome de Deus como Elohim, e que teria sido escrita após a queda do Reino do Norte, por volta de 720 a.C. À ambas as tradições Javista e Eloísta, foram acrescentados documentos e relatos de tradições denominadas Sacerdotal e Deuteronomista. Todas as essas tradições escritas, contando os relatos da criação, patriarcas, êxodo e fixação na terra, bem como a história da monarquia, foram fundidas em um só escrito, depois do exílio babilônico, por volta do século V a.C.
3. Breves Notas
Como dissemos antes, o Livro do Êxodo integra uma obra maior juntamente com os Livros do Gênesis, Levítico, Números e Deuteronômio, chamada Torá. O termo hebraico Torá pode ser traduzido por instrução, mas também é frequentemente traduzido por Lei (Lv 11, 46 e Ez 43, 12-12). Na Septuaginta, que é a versão grega do Antigo Testamento, traduzida por volta do século III a.C., o termo Toráfoi traduzido por nomos (nómos) que significa lei.
O gênero literário predominante no Pentatêuco é a lei. Enquanto no Gênesis temos essencialmente um texto narrativo, nos demais livros do Pentatêuco temos a narrativa mesclada à lei[1].
Assim, diferentemente do Livro de Gênesis, cujo texto é essencialmente narrativo, no Livro de Êxodo, teremos a dualidade narrativa e legislativa[2], o que constitui uma novidade, levando alguns autores a crer que ao texto narrativo foi interposto posteriormente o texto legislativo.
Adotamos nesse estudo a ideia de que o Livro do Êxodo se divide em três partes básicas, a saber, (i) a saída do Egito (1, 1-15,21); (ii) a caminhada pelo deserto (15,22-18,27) e os acontecimentos do Sinai (19-40[3]).
São essas algumas breves notas para orientar nossa leitura do Livro do Êxodo.
Capítulos 1-6
1. A ligação entre Gênesis e Êxodo
O texto de Êxodo 1, 1-7 está posto ali como um elo entre o final do Livro de Gênesis e o início do Livro de Êxodo, fazendo ali uma ligação de lógica e historicidade, para dar coerência à narrativa de tal modo que a leitura do Pentateuco possa fluir de forma harmoniosa e clara.
2. Crescimento populacional dos hebreus
Com efeito, Êxodo 1, 1-7 narra os descendentes de Jacob que foram para o Egito, a sua fixação na terra de Gessen (Gósen) e o seu crescimento populacional, contando no início com o apoio e reconhecimento do governo do Egito. No entanto, o crescimento populacional dos descendentes de Jacob no Egito foi de tal magnitude que começou a amedrontar o próprio povo e governo egípcios. Brown, Fitzmeyer e Murphy[4] afirmam que o controle de natalidade era uma preocupação em caso de escravos que se tornassem numerosos, a ponto de toldar a hegemonia nacional, portanto, a ação egípcia estava coerente com as práticas de “manejo” de povos escravizados.
Com a morte de Jacob, José, dos seus irmãos e de toda aquela geração, bem como com a morte do próprio Faraó contemporâneo de José e toda aquela casta administrativa, todo aquele episódio dos anos de fartura, dos anos de escassez, bem como do árduo trabalho salvador de José caiu no esquecimento.
A partir daí, os hebreus no Egito começam a parecer um estorvo, um estorvo que precisa ser contido, controlado, e com outras palavras, eliminado. Mas bem antes disso, os egípcios perceberam que aquele numeroso povo teria mais utilidade se fossem reduzidos à condição de escravos. Com isso os hebreus, descendentes de Abraão que chegaram e viveram no Egito como hóspedes, passaram à condição de escravos e essa condição de escravidão se estendeu por mais de 400 anos (1, 11-14).
Esse é o tema do primeiro capítulo do Êxodo (1, 8-14).
Mesmo com a escravidão, o povo hebreu continuou a se multiplicar no Egito. Assim, além da escravidão era preciso eliminar, no todo ou parcialmente, a população de hebreus. A primeira tentativa é a matança dos recém-nascidos do sexo masculino, sendo atribuído essa tarefa às parteiras (1, 15-22). Não sendo possível monitorar o momento exato e o lugar exato onde as hebreias darão a luz, a solução mais fácil é a determinação de uma carnificina, com a matança de todas as crianças do sexo masculino (1, 22).
É razoável verificar na matança dos meninos uma prefiguração de Cristo. Com efeito, assim como o Faraó manda matar os meninos, na esperança de conter o avanço populacional dos israelitas, exatamente aquele menino que escapa será o libertador, porque não dizer, o salvador dos israelitas. Do memos modo que 1200 anos depois, quando o rei Herodes mandar matar todos os meninos com menos de dois anos, o Nosso Senhor será preservado, fugindo exatamente para o Egito, o mesmo Egito que quis matar os meninos 1200 anos antes, e mais tarde, o menino que é preservado da matança de Herodes, realiza a obra salvífica (Gn 1, 22 e Mt 2, 13-18).
Acerca da historicidade do Êxodo, convém lembrar que em Gênesis 1, 11 afirma-se que parte do trabalho escravo se deu na construção das cidades armazéns de Pitom e de Ramsés. A cidade da residência do Faraó Ramsés II, que era localizada no delta do Nilo, também chamada de Tânis ou Qantir, foi construída pelo Faraó Ramsés II, da XVIII dinastia, fato que leva a crer que Ramsés II, que viveu entre 1290 e 1224 a.C., era o Faraó com quem Moisés irá tratar[5].
De todo modo, essa não é uma opinião unânime, pois Teodorico Ballarini[6], em aprofundados estudos aponta a possibilidade de o Faraó com quem Moisés trata ser anterior a Ramsés II, e então seria o caso de Tutmofis III ou Amenofis II que reinaram em 1501-1447 a.C. e 1447-1420 a.C., respectivamente, ou ainda depois de Ramsés II, que seria Ramsés III que reinou em 1198-1166 a.C.
De toda sorte o período do Êxodo se situa entre 1501 e 1198.
3. O nascimento de Moisés e a fuga para Madiã
Em meio a essa situação de matança de crianças, nasce uma criança de uma família de descendentes da tribo de Levi, tendo os seus pais o escondido por três meses. A partir de então, diante da dificuldade de guardar a criança, os pais a escondem no Nilo, pondo-o em um cesto de vime, ficando a sua irmã Mirian encarregada de o vigiar e proteger (2,1-4).
Há uma controvérsia quando ao sentido do nome de Moisés. Alguns autores entendem que o termo Moisés advém do hebraico “Masâ” que significa “tirado”, porque da água ele foi tirado. Mas Brown, Fritmeyer e Murphy[7] lembram que quem dá o nome de Moisés ao menino é a filha do Faraó. Ora, em tempos de beligerância entre o governo egípcio e os escravos israelitas, não era razoável pensar que essa criança teria o home de origem israelita. Assim, o termo Moisés pode ser uma contratação de “Thutmosés”, que significa “nascido”. No mesmo sentido, Dianne e Karris[8] afirmam que o termo “Thutmosés” significa o “Rei Thut Nasceu”.
A questão do nome de Moisés não se trata de uma discussão etimológica e onomástica, mas sim de uma espécie de uma lição de Deus ao Faraó, quase uma charada. A primeira parte diz respeito ao fato de que a ideia de uma criança em um cesto de junco não era em si uma novidade, pois a lenda de Sargon, um rei sumério do século XXIV, que após o nascimento fora escondido por seu pai em um cesto de junco em um rio. Assim, o povo de Israel será libertado, não por um estrangeiro “puro”, mas por um homem de nome egípcio, cuja origem era tão popular quanto a uma lenda comum em seu tempo[9].
A criança é encontrada pela filha de Faraó, que se banhava no rio com suas criadas. Mas diante da dificuldade de cuidar da criança, a filha do Faraó precisa de uma babá, de uma pessoa que cuide daquela criança em sua primeira infância. Eis que surge ali a irmã de Moisés, Mirian, que na verdade vigiava a criança. A própria Mirian se oferece para encontrar uma babá para o menino, apresentando a sua própria mãe, que é, por óbvio a mãe de Moisés.
Por providência de Deus, Moisés é criado em sua primeira infância pela própria mãe biológica. Quando ele tem idade para ser criado no palácio, a filha de Faraó o toma, o adota e o leva consigo, chamando-o de Moisés.
O texto bíblico não menciona quando e nem como Moisés teve ciência de sua real identidade hebraica, bem como não informa se as demais pessoas da casa de Faraó sabiam que entre eles vivia um homem conhecido como “filho da filha de Faraó” que na verdade era um hebreu, cujos pares eram escravos.
De toda sorte Moisés sabendo de sua condição, uma vez adulto, fora visitar os seus irmãos. Lá ele encontrou um egípcio que feria um hebreu, Moisés então o matou, mas temendo ser descoberto, sepultou o corpo do egípcio na areia.
O ato de Moisés se torna público e o Faraó pretende agora matá-lo (2, 14-15). José então foge para a terra de Madiã, lá conhecendo Jetro, que acolhe Moisés como empregado e lhe dá a filha Séfora por esposa (2, 15b-22).
Nesses quatrocentos anos de escravidão, o povo descendente de Jacob sempre rogou a Deus por uma libertação (2, 23-25).
3.1. A vocação de Moisés
Moisés que há muito tempo fugira do Egito, estava totalmente acomodado na terra de Madiã. Não gozava mais dos bens e favores da vida no palácio, mas também não era obrigado a viver como escravo como os seus irmãos. Deus então chama Moisés para o fim de libertar o povo hebreu da escravidão egípcia e levá-lo à terra de Canaã (3, 1-6). Esse chamado se dá por meio de uma teofania na forma de um arbusto que queima, mas não se consome.
A ordem de Deus é clara, no sentido de Moisés dever se dirigir ao Faraó e ordenar a libertação do povo hebreu, para que possam servir a Deus e tornar a Canaã. Moisés reluta, mas o chamado é forte e determinante (3, 7-12).
3.2. O nome divino e a partida de Moisés para o Egito
A questão do nome divino é parte integrante da teofania e está profundamente enriquecida de saber teológico. Moisés irá diante de um monarca de um dos maiores países do mundo em seu tempo, ordenando que esse monarca liberte o seu povo que vive ali em regime de escravidão. A pergunta é óbvia: Por ordem de quem o Faraó soltaria o povo? Logo, Moisés precisava saber qual era o nome daquele que se identificava como “O Deus de Abraão, Isaac e Jacob” (2, 3).
Deus responde a Moisés se identificando com “Eu Sou!” Exatamente esse é o nome, Eu Sou, porque Deus se identifica como o Todo-poderoso, aquele que é, que sempre existiu e que existirá para sempre, sem sombra e sem variação, completo e perfeito em si mesmo, aquele que existe a partir de si mesmo e por meio do qual tudo o que existe veio a existir (3 ,13-15).
Deus então instrui a Moisés acerca de sua missão e já o adverte que ele encontrará oposição do soberano do Egito, razão pela qual haverá um conflito de grandes proporções (3, 16-20).
Moisés reluta em obedecer a Deus, reconhecendo a sua limitação e insignificância, diante do poderoso Egito. Deus então mostra-lhe sinais, como a vara que se converte em serpente, a mão sã em mão leprosa, mostrando a Moisés que a missão tem um caráter divino, logo sinais divinos o acompanharão (4, 1-9)[10].
Por fim, Moisés alega para a sua dificuldade com palavras, reluta severamente e pede que Deus escolha outro. Por fim, Deus ordena que Moisés parta e que tome Arão seu irmão como auxiliar para falar ao Faraó (4, 10-23). Enquanto isso, Deus ordena a Arão que atue ao lado de Moisés como seu auxiliar e que vá ao seu encontro (4, 27-30).
No retorno de Moisés ao Egito existe um texto enigmático, quando segundo o texto bíblico em uma hospedaria Deus aparece procurando matar Moisés. Séfora então toma uma faca e corta o prepúcio do seu filho e diz a Moisés: “Me és um esposo sanguinário” e Deus o deixou.
Esse relato enigmático deve ser interpretado do mesmo modo que se interpreta o texto da passagem de Jacob pelo vau do riacho Jaboque (Gn 32, 23-33). A expressão que Deus queria matar Moisés somente faz sentido se interpretada como uma luta espiritual, uma catarse de transformação de um homem velho em um homem novo, uma conversão. A circuncisão realizada no filho de Moisés mostra a sua adequação ao pacto que Deus fez com Abraão (Gn 17) e o protagonismo da Séfora, a esposa, mostra a participação dessa mulher, participação positiva, no episódio[11].
4. Primeira entrevista de Moisés e Faraó
Como era de se esperar, o Faraó não dá ouvidos a Moisés, não reconhecendo a autoridade do Deus de Abraão, Isaac e Jacob, e muito menos a autoridade de Moisés (5, 1-5).
Pelo contrário, o Faraó reestruturou o trabalho dos escravos hebreus, tornando-o mais pesado. Os escravos deveriam fazer uma certa quantidade de tijolos por dia, sendo que a palha que é misturada ao barro lhes era fornecida. O Faraó exige que eles providenciem a palha e mantenham a produtividade, o que torna o trabalho muito mais oneroso (5, 6-14).
Tal situação vai por óbvio gerar reclamações (5, 15-18) e agora essa dificuldade será imputada a Moisés e Arão, pois eles vieram com promessa de liberdade, mas o resultado inicial foi o agravamento da escravidão (5, 19-21).
[1] LÓPEZ, Félix Garcia. O pentateuco. Tradução Alceu Luiz Orso. 2ª Ed. São Paulo: Ave Maria, 2004, p. 15.
[2] LÓPEZ, Félix Garcia. O pentateuco introdução ao estudo da bíblia. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, vol. 3a, p. 111.
[3] ALTER, Robert. KERMODE, Frank. Guia literário da bíblia. São Paulo: Unesp, p. 5.
[4] BROWN, Raymond E. FRITZMEYER, Joseph A. MURPHY, Roland E. Novo comentário bíblico são jerônimo antigo testamento (Tradução Celso Eronides Fernandes). São Paulo: Academia Cristã: Paulus: 2012, p. 131.
[5] BROWN, Raymond E. FRITZMEYER, Joseph A. MURPHY, Roland E. Novo comentário bíblico são jerônimo antigo testamento (Tradução Celso Eronides Fernandes). São Paulo: Academia Cristã: Paulus: 2012, p. 132.
[6] BALLARINI, Teodorico. O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p.257.
[7] BROWN, Raymond E. FRITZMEYER, Joseph A. MURPHY, Roland E. Novo comentário bíblico são jerônimo antigo testamento (Tradução Celso Eronides Fernandes). São Paulo: Academia Cristã: Paulus: 2012, p. 133.
[8] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. Comentário bíblico (tradução Barbara Theoto Lambert). São Paulo: Loyola, vol. I, p. 94.
[9] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. Comentário bíblico (tradução Barbara Theoto Lambert). São Paulo: Loyola, vol. I, p. 95.
[10] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. Comentário bíblico (tradução Barbara Theoto Lambert). São Paulo: Loyola, vol. I, p. 97.
[11] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. Comentário bíblico (tradução Barbara Theoto Lambert). São Paulo: Loyola, vol. I, p. 96.