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GRUPO SANTO ANSELMO
Fides Quaerens Intellectum

A Virgindade Perpétua de Nossa Senhora Ante o Texto de Mateus 1,25

A Igreja Católica por muitos de seus seguidores, desde tempos antiquíssimos que remonta aos apóstolos e seus primeiros sucessores sempre acreditou e ensinou a doutrina da Virgindade Perpétua de Maria. Essa verdade foi elevada à condição de dogma católico no Concílio de Latrão, em 649.

As denominações cristãs não católicas se opõe a esse entendimento, citando muitas vezes o texto do Evangelho Segundo São Mateus 1,25, transcrito abaixo, como uma objeção a esse dogma da Virgindade Perpétua de Nossa Senhora. Diz o texto: “E ele não a conheceu até que ela deu à luz um filho e chamou seu nome de Jesus”.

A negativa da virgindade perpétua de Maria a partir da preposição temporal “até”

Diante de tal texto, dizem, dentre outros, os nossos irmãos separados,que diante do termo até, aqui entendido como uma preposição temporal, poderá se presumir que após o nascimento de Jesus, Maria e José teriam então tido relações sexuais como qualquer casal.

O equívoco de tal entendimento

Estamos aqui diante de um problema de hermenêutica do texto de Mateus 1,25, o que reclama algumas notas iniciais antes de entrarmos propriamente no tema. Por hermenêutica, entende-se a área da filosofia que estuda a teoria da interpretação, sobretudo com relação aos textos literários, religiosos ou jurídicos, com o fim de conhecer o seu sentido verdadeiro.

O primeiro critério da exegese é a consideração do texto em si, isto é, a leitura literal para a boa compreensão do texto, isso porque sem a compreensão daquilo que está escrito, não será possível extrair, compreender o sentido e o alcance do texto. Nesse sentido, devemos considerar o texto tal qual está escrito, sem lhe acrescentar nada, nenhuma palavra; bem como sem lhe retirar nada, nenhuma palavra.

Uma vez que o texto seja lido e considerado o seu conteúdo, o hermeneuta ou exegeta deve ser capaz de responder às perguntas e considerações que possam ser formuladas e respondidas dentro do texto, com o uso exclusivo do texto. Essa compreensão do texto é a primeira parte de uma boa interpretação.

Uma vez considerado o texto, o hermeneuta ou exegeta deverá partir para os elementos de ordem cultural, histórica, geográficas, dentre outros, externos ao texto, mas com ele profundamente identificados e relacionados, que é o que chamamos de contexto.

Nessa fase o hermeneuta já conhece bem o texto e suas implicações e os elementos contextuais de natureza cultural, histórica, geográfica e de outras eventual natureza. A partir daí já será possível extrair o conteúdo do texto, o seu sentido e alcance.

A partir dessa fase, o hermeneuta deve ser honesto o bastante para verificar a sua validade interpretativa em situações análogas, devendo evitar de maneira absoluta a interpretação isolada, e, sobretudo a fixação de critérios isolados de interpretação. Com outras palavras, o hermeneuta deve ser coerente e honesto com a interpretação que realiza.

É claro que nem sempre o texto permite uma incursão de tão grande complexidade, dada a simplicidade de suas palavras e o diminuto alcance de sua proposição. Esse parece ser o caso presente, no qual o texto faz uma afirmação de negativa de ato sexual durante a gravidez, e o que se quer saber é se após o parto e o nascimento de Jesus, teria ocorrido relações sexuais entre Maria e José.

Então, voltemos ao texto e estritamente ao que ele diz: “E ele não a conheceu até que ela deu à luz um filho e chamou seu nome de Jesus”. Considerando o texto tal qual está escrito, temos por claro que José e Maria não tiveram relações sexuais até o dia do nascimento de Jesus. Isso está claro no texto, mas vamos adiante: O texto diz que Maria e José tiveram relações sexuais após o nascimento? Existe tal afirmação no texto de Mateus 1,25? Não. Com efeito, o texto não diz em nenhuma linha que Maria e José tiveram relações sexuais, mesmo porque o texto termina com o nascimento de Jesus, nada dizendo sobre o que aconteceu depois.

Então, o que dizem os nossos irmãos separados? Eles dizem que após o nascimento de Jesus, Maria e José tiveram relações sexuais, como um casal qualquer.

Chega-se a tal afirmação com o seguinte argumento: a preposição temporal até marca um espaço de tempo em que Maria e José não tiveram relações sexuais. Mas mesmo sem o texto dizer que depois do parto, Maria e José tiveram relações sexuais, afirmam que a preposição temporal até sugere, indica, faz pensar, permite inferir que Maria e José tiveram relações sexuais após o nascimento de Jesus.

Mas o texto de Mateus 1,25 faz tal afirmação? Não e não.

Então o que temos aqui é uma inferência, uma sugestão, uma ampliação que não está no texto bíblico. Portanto, o que temos aqui é a primeira quebra de uma regra de exegese que é acrescentar ao texto algo que não está escrito no texto.

Mas e a preposição temporal até poderia ser tomada como uma sugestão de depois do nascimento de Jesus, Maria e José tiveram relações sexuais? Não, a preposição temporal até indica que naquele lapso temporal não aconteceu o evento que se investiga, no caso, o ato sexual.

Vejamos outras construções gramaticais de igual teor, para verificarmos a possível plausibilidade de tal inferência.

Vejamos o texto seguinte em que Paulo exorta Timóteo em I Tm 4,13: “Persiste em ler, exortar e ensinar, até que eu vá”. Quando Paulo usa a preposição temporal até significa que depois que ele chegar, Timóteo deve parar de ler, exortar e ensinar? Claro que não, de modo algum. O que Paulo quer dizer é que nesse intervalo de tempo, por isso a preposição temporal até, Timóteo deveria ler, exortar e ensinar. O que se entende aqui é que o até não altera o sentido do que se deve fazer ou deixar de fazer, quando ocorrer o seu desiderato, no caso, a chegada de Paulo.

Vejam o risco de uma interpretação em que eu passo a inferir, sugerir, acrescentar ao texto algo que o texto não diz.

Vejamos ainda, outro texto, quando Deus pune a esposa de Davi, filha de Saul em II Samuel 6,23: “E Mical, a filha de Saul, não teve filhos, até o dia da sua morte”. Uma vez que eu interpreto a preposição temporal até como limite para a mudança do evento, deverei concluir que Mical não teve filhos até o dia da sua morte, mas depois de sua morte, ela teve filhos!? Absurdo!!!

Vejam novamente o risco de uma interpretação em que eu passo a inferir, sugerir, acrescentar ao texto algo que o texto não diz.

Vejamos também o texto em Paulo exorta Timóteo a guardar os mandamentos de Deus em I Timóteo 6,14: “Que guardes este mandamento sem mácula e repreensão, até à aparição de nosso Senhor Jesus Cristo”. Uma vez que eu interpreto a preposição temporal até como limite para a mudança do evento, devo considerar que por ocasião da aparição de nosso Senhor Jesus Cristo, devemos deixar de guardar os mandamentos de Deus!? Absurdo!!!

Vejam novamente o risco de uma interpretação em que eu passo a inferir, sugerir, acrescentar ao texto algo que o texto não diz.

Por todo o exposto, fica claro que não é possível afirmar que a preposição temporal até indique que após o nascimento de Jesus, Maria e José tiveram relações sexuais.

Todavia, verificando versículos semelhantes, em que se usa a preposição temporal até, podemos observar em todos os casos (I Tm 4,13; II Sm 6,23 e I Tm 6,14) que tal preposição temporal se referia ao período em comento, sem mudança do evento principal após o advento da novidade (chegada de Paulo em I Tm 4,13; morte de Mical em II Sm 6,23 e aparição do Senhor em I Tm 6,14).

A questão a ser concluída é que o texto de Mateus 1,25 não afirma que Maria e José tiveram relações sexuais após o nascimento de Jesus. De igual modo, não é possível basear-se na preposição temporal até para inferir o que não está no texto, pois como se percebe em outros textos, tal prática ou inferência, pode levar a absurdos incontáveis.

Um respeitável autor protestante, RVG Tasker[1] (1895-1976), professor emérito de exegese do Novo Testamento na Universidade de Londres, afirma textualmente que:

“Alguns estudiosos omitiram também as palavras ‘e não a conheceu até’ baseados na evidência de um velho manuscrito latino maiúsculo (MS) e do Siríaco Sinático, argumentando que a presença destas palavras é desnecessária, tendo sido acrescentadas para evitar equívocos sobre o nascimento virginal”.

Por todo o exposto, fica claro que não é possível inferir no texto de Mateus 1,25 a afirmação de que Maria e José tiveram relações sexuais após o nascimento de Jesus. Tal não é possível porque esse raciocínio viola uma regra básica de hermenêutica, a saber, inferir uma afirmação que não está no texto a ser interpretado. Também, nem mesmo sob o aspecto gramatical é possível fazer tal interpretação extensiva, uma vez que a preposição temporal até não induz necessariamente uma mudança de situação, quando ocorre o evento citado no texto, conforme se verificou em outros textos, com o uso da mesma preposição temporal.

Então a conclusão é que o texto de Mateus 1,25 não viola o dogma da Virgindade Perpétua de Nossa Senhora.

O Dogma da Virgindade Perpétua de Maria

O termo dogma é a transliteração da palavra grega dogma que significa ensino, tendo a mesma origem etimológica de dokein de onde derivou palavras como docente e docência, ambas relacionadas ao ensino.

Então, é preciso de início desmistificar a palavra dogma, que o vulgo entende como algo imposto contra a verdade, uma regra imposta de cima para baixo. Não, o dogma é na verdade um ensinamento, convite ao aprendizado de uma verdade revelada por Deus e guardada pela Igreja.

É preciso lembrar também que a Igreja Católica não assenta a sua fé exclusivamente nas Sagradas Escrituras, mas sim na Tradição Apostólica e nas Sagradas Escrituras.

Acerca dessas duas fontes de revelação de Deus, ensina-nos o Catecismo da Igreja Católica em seu item 81 que: A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto redigida sob a moção do Espírito Santo. Quanto à Sagrada Tradição, ela “transmite integralmente aos sucessores dos apóstolos a Palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos apóstolos para que, sob a luz do Espírito de verdade, eles, por sua pregação, fielmente a conservem, exponham e difundam.

Como vimos, o item 81 do Catecismo da Igreja Católica define a Sagrada Escritura como Palavra de Deus, e também afirma que a Tradição transmite fielmente a Palavra de Deus confiada por Cristo. Com outras palavras, diz o item 81 do Catecismo da Igreja Católica que tanto a Sagrada Escritura como a Tradição são Palavra de Deus. É essencial essa compreensão de que a Palavra de Deus é formada pela Tradição Apostólica e pela Bíblia Sagrada.

Com isso, afirmamos, como faz o Catecismo da Igreja Católica no item 82, que a Igreja “não deriva a sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado somente da Sagrada Escritura”, mas da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição, aceitando ambos em igual pé de igualdade, devoção, respeito e consideração.

No âmbito católico, o fato de coexistirem duas fontes da divina revelação – Tradição e Sagradas Escrituras – em momento algum pode significar perigo de contradição ou confusão. Com efeito, a Constituição Apostólica Dei Verbum, resultada do Concílio Vaticano II e promulgada pelo Papa São Paulo VI em 18/11/1965, afirma em seu item 9 que:

9. A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência.

Desde remota época a Igreja professa que Maria é sempre virgem (no sentido físico). Esta verdade pertence ao patrimônio da fé, como declarou, em conformidade com a Tradição, o Papa Paulo V (aos 7/08/1555): “A bem-aventurada Virgem Maria foi verdadeira Mãe de Deus, e guardou sempre íntegra a virgindade, antes do parto, no parto e constantemente depois do parto” (DS 1880 [993]).

A virgindade de Maria é um mistério realizado por Deus, tendo em vista o nascimento de seu filho, de tal sorte que ela foi e se manteve sempre e perfeitamente virgem, antesdurante e depois do parto, sem que jamais se lhe tenha rompido a membrana do hímen. Trata-se de uma manutenção perfeitíssima de integridade física que Deus quis preservar em Maria, em razão da maternidade divina.

A virgindade de Maria antes do parto não guarda maiores discussões, pelo menos no âmbito geral do cristianismo, nela crendo por igual os católicos e protestantes, pois o próprio texto bíblico confirma a virgindade antes da concepção (Lc 1,27,34).

Mas além da virgindade anterior à concepção, a Igreja Católica ensina que Maria permaneceu virgem durante o parto. Mesmo durante o processo do parto, Maria permanece virgem. O Magistério da Igreja declara tal virgindade, os Santos Padres proclamam essa afirmação. Vejam bem, que indignidade seria o fato de Jesus que fora concebido virginalmente fizesse essa virgindade desaparecer, romper, degenerar, deixar de existir durante o parto ou depois do parto. Por certo não seria uma encarnação perfeitíssima. Por que o sinal milagroso da concepção – engravidamento de uma virgem por obra do Espírito Santo – deveria deixar de existir?

Mas a perfeição da encarnação não cessa no parto, pois Maria continua a existir depois do parto. Mas e então, aquela que foi considerada puríssima, a ponto de ser escolhida para ser a Mãe de Deus, entregar-se-ia novamente à maternidade humana, mediante normais relações sexuais? Não, a unicidade de Jesus como filho do Pai, ensina-nos a Igreja, reclama a unicidade da Mãe, por isso a Igreja é clara em seguir a Tradição repassada desde os tempos apostólicos de que Maria não teve outros filhos e não teve relações sexuais depois do nascimento de Jesus.

Conclusão

Por todo o exposto, concluímos que a interpretação dos nossos irmãos separados não se sustenta, como já demonstrado, e ainda, concluímos que o texto de Mateus 1,25 não contraria o dogma da Virgindade Perpétua de Maria.

Gabriel Campos, Brasília-DF, 12 de Janeiro de 2024, Memória de Santo Antônio Maria Pucci, OSM.


[1] TASKER, RVG. Mateus introdução e comentário. Tradução de Odayr Olivetti. 1ª Ed. 11ª Reimpressão. São Paulo: Vida Nova, p. 28-29.

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