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GRUPO SANTO ANSELMO
Fides Quaerens Intellectum

Leitura Bíblica – Breves Comentários – Gênesis 26-30

1. O ciclo de Jacob

Nessa fase da revelação, a partir da vida de Jacob, Deus inicia a disseminação do seu processo de criação de uma grande nação, mediante os filhos de Jacob. Enquanto seu pai Isaac teve dois filhos, Esaú e ele próprio Jacob, e seu avô Abraão teve apenas um filho de sua esposa Sarah, Jacob terá 13 filhos: Ruben, Simeão, Levi, Judá, Issacar, Zebulon, Judá e Dina, filhos da primeira esposa Lia; Gade e Aser, filho da concubina Zilpa; Dã e Naftali, filhos de sua concubina Bila e José e Benjamin, filhos de sua esposa Raquel.

Jacob nasce como irmão gêmeo de Esaú, o filho mais velho de Isaac e Rebeca. Como mulher grávida, Rebeca percebe que os gêmeos já lutam e digladiam em seu ventre, mesmo antes de nascer. Não se sabe como, mas Rebeca ouve uma profecia, a Bíblia não menciona quem foi o profeta, de que o mais velho serviria ao mais novo, quebrando assim a regra patriarcal (25, 23). Jacob nasce segurando o calcanhar de Esaú, por isso o nome que lhe deram, Jacob, significa o suplantador, pois ele vai suplantar seu irmão mais velho como patriarca da família[1].

2. Jacob o suplantador

São dois os momentos em que Jacob de forma astuta, talvez mais, de forma bastante desonesta, vai enganar Esaú seu irmão.

Uma vez adultos, Jacob se vale de um momento de desespero e fome de Esaú, que está cansado e faminto após uma caçada, e lhe compra o direito de primogenitura por um prato de lentilhas (25, 29-34). É possível aqui ver um caráter censurável e aproveitador em Jacob, valendo-se do fato de seu irmão chegar faminto da caçada e lhe pedir comida, mas ele condiciona a cessão de alimentos, de um prato de lentilhas, ao direito da primogenitura. Por outro lado, não se pode desprezar e deixar de censurar a conduta de Esaú, rude e sem modos, com pouquíssima ou nenhuma importância para a tradição patriarcal, reputando-a como nada, buscando apenas o interesse pessoal e imediato, nesse caso figurado por um simples prato de lentilhas[2].

Deus escolhera por sua vontade a Jacob para ser o patriarca e essa vontade foi dada a conhecer a sua mãe ainda no período de gravidez (25 ,23). No entanto, será que Deus precisaria de um ardil humano, de uma esperteza que beira a desonestidade para cumprir o seu desejo? Por certo que não, mas Deus se valeu dos atos humanos para cumprir aquilo já havia decidido. Tal fato não escusa a Jacob, pois Deus poderia de modo diverso cumprir a sua vontade[3].

No segundo episódio, Jacob com a ajuda maliciosa de sua mãe Rebeca, engana a seu pai Isaac, já velho e com baixa acuidade visual, e toma a benção patriarcal que era devida a Esaú (27).

E como se faz tal engano? Isaac já velho e quase senil, pede a Esaú que lhe prepare uma carne de animal selvagem bem saborosa, para que ele coma e lhe dê a bênção patriarcal (27, 1-4). Rebeca ouve a conversa, chama Jacob, seu filho preferido e apresenta o plano de enganar Isaac, valendo-se de sua velhice e assim interceptar em favor desse a bênção que era devida a Esaú. Como se pode ver o plano tem certa dose de maldade e vilania, pois envolve um jogo de pura desonestidade para com uma pessoa idosa quase senil.

Enquanto Esaú sai à caça, Rebeca que sabe dos gostos do esposo, prepara-lhe um cozido de ovelha, veste seu filho Jacob com as roupas de Esaú e lhe cobre de vestes de pelos, pois Esaú era peludo. Jacob então traz o guisado a seu pai Isaac que chega a titubear com os seus próprios sentidos, percebendo a voz de Jacob, mas o cheiro de Esaú, que estava nas vestes (27, 6-25). Isaac, velho e doente, após comer a iguaria, abençoa Jacob pensando se tratar de Esaú.

Pouco tempo depois, Esaú chega com a iguaria e a oferece a seu pai Isaac, sobrando-lhe a bênção patriarcal, quando então todos percebem o engano.

Esaú irado e em prantos pede a seu pai que o abençoe, mas Isaac nega, dizendo que não pode mais abençoá-lo, pois a benção já fora dada a Jacob (27, 30-37). O desespero de Esaú é profundo e comovente, pedindo ao pai alguma bênção. O velho Isaac se levanta e proclama tristes palavras que mais se parecem com uma anti-bênção (27, 39-40).

Toda essa situação vai provocar um intenso ódio de Esaú para com o seu irmão, a separação da família, o sofrimento dos pais e vinte anos para que tudo volte a ser resolvido em paz[4].

Uma breve nota sobre a patriarquia ou sistema dos patriarcas se faz necessária aqui para bem compreensão dos fatos e sentido do texto bíblico.

Allan G. Johnson[5] define o patriarcalismo como um sistema social, no qual famílias inteiras, ou sociedades inteiras são organizadas em torno da ideia de domínio do pai, tendo surgido há mais ou menos 7.000 anos. Por seu turno, Pierre Chaunu[6] afirma que patriarquia é uma consequência natural do desenvolvimento humano e social, pois a família, centrada no homem provedor de alimentos, foi a célula primeira, o embrião de todos os núcleos sociais, portanto, a patriarquia era necessária que existisse em certo momento histórico. E nesse sentido, também vale a ideia de Rubim Santos Leão de Aquino[7], que define a organização familiar e a patriarquia como uma consequência natural da revolução agrícola, quando os seres humanos deixam a condição de coletores e caçadores e se organizam em núcleos a partir da família singular, grupos de famílias e clãs.

É a partir dessa definição que devemos estudar o ato de Jacob e de sua mãe Rebeca, quando enganaram Isaac, já idoso e com parca visão, para que a benção da primogenitura lhe fosse dada, em lugar a quem de direito caberia, Esaú, por ser o mais velho.

De outro lado, sabemos que Deus já havia decidido em sua soberana vontade que a condução da família caberia a Jacob e não a Esaú, com outras palavras, nesse caso, o próprio Deus foi contra o princípio da patriarquia, cabendo ao irmão mais novo chefiar e liderar o irmão mais velho.

Caberia a Esaú a benção patriarcal e a chefia da família, por ser este o irmão mais velho, o primeiro a nascer (25, 23), cabendo a Jacob a condição de coadjuvante na liderança da família.

O sistema patriarcal, tal qual definido linhas acima, nasceu há 7.000 anos, portanto, já estava consolidado há mais de 3.000 anos quando Isaac e Jacob eram homens adultos, portanto, não caberia a Jacob se irromper contra o sistema. Ademais, não cabe aqui a ideia de julgar o sistema como injusto ou inadequado, pois não devemos considerar um evento ocorrido há quase 4.000 anos a partir da perspectiva, valores e sistemas do mundo de hoje, isso seria um erro crasso.

O argumento de que Deus escolhera Jacob para liderar a família não o isenta de críticas ao trapacear o direito de seu irmão e enganar o seu pai. Isto é, Deus não precisa de nossas ilegalidades e arbitrariedades para conduzir a sua vontade e os seus desígnios. Por essa razão, o ato de Jacob, com o auxílio de Rebeca, foi ilegal, injusto, pecaminoso e reprovável.

Entretanto, o ato ilegal de Jacob de algum modo realizou aquele oráculo de Deus, dizendo que o mais velho serviria ao mais novo (25, 23). Isso quer dizer que Deus aprova a ilegalidade e o erro? De modo algum. A questão é que Jacob por seu caráter afoito, ambicioso e arteiro passou à frente do irmão, e, embora subjetivamente reprovável a sua conduta, objetivamente essa conduta realizou a vontade de Deus e ele, o mais novo, passou a ser o líder da família. Isso mostra que Deus é o Senhor da história e a conduz de forma soberana e misteriosa, podendo, inclusive, contar com a participação direta do homem em seu livre arbítrio. Isso também quer dizer que se Jacob não trapaceasse o seu irmão, de algum modo Deus iria fazer valer a sua vontade e Jacob teria a primogenitura. Deus não esteve e nem ficou refém da ilegalidade de Jacob.

A artimanha de Jacob e Rebeca não foi um engano suficiente para consolidar essa condição de o mais novo obedecer ao mais velho, pois de certo modo, afirma Teodorico Ballarini[8], Isaac tinha o poder de anular a bênção dada ilegalmente a Jacob, mas não o fez, pois, a benção não era um ato mágico, mas um ato jurídico e reclamava validade para produzir efeito.

Então de certo modo, Isaac sabendo que fora enganado, aceitou a enganação e manteve a bênção dada a Jacob, mesmo ilegalmente. Se assim foi, por que Isaac concordou com o erro ao ser engando? Talvez por saber que Jacob, apesar de enganador, estava mais habilitado para a condição de patriarca. De certo modo, podemos concordar com Santiago Oporto e Miguel Garcia[9], que afirma que nessa artimanha, nem mesmo Isaac é de todo inocente. Um prenúncio de tal afirmação é o fato de que Esaú não estava vinculado e não tinha compromisso com os valores familiares da patriarquia, e provou isso trocando o seu direito por um prato de lentilhas. O seu ato foi tão vil que seu irmão Jacob se sentiu de, mais tarde, no direito de lhe furtar a benção patriarcal (25, 29-34).

3. Jacob na Mesopotâmia, teofania, casamentos e filhos

A ação de Jacob tomando a bênção que cabia a Esaú provoca a ira desse, que leva os seus pais a enviar Jacob para a Mesopotâmia, cidade de Haran, onde vive Labão, irmão de sua mãe (27, 46; 28, 1-5).

No entanto, o que se observa da leitura do texto (27, 46; 28, 1-5) é que o motivo para a viagem não era mais a ira de Esaú contra Jacob, mas sim a necessidade de se buscar uma esposa no âmbito da família, sendo esse o costume da época. Essa aparente discrepância mostra que esse relato da vida dos patriarcas eram muitas vezes relatos diversos, que foram aos poucos sendo colacionados.

Jacob então parte para a Mesopotâmia, mais especificamente para a cidade de Haran. No caminho ele tem uma teofania, uma manifestação divina em sonho. Ele escolhe um lugar para dormir e usa uma pedra como travesseiro. Jacob sonhou com uma escada que ligava a terra ao céu, pela qual os anjos subiam e desciam. No topo da escada, Deus lhe diz que dele fará uma grande nação e lhe abençoará grandemente, repetindo as promessas feitas a Abraão e a seu pai Isaac. Atordoado com aquele sonho, mas crente de que se trata da verdade, Jacob acorda e diz que aquele lugar é terrível, por ser na verdade e “Casa de Deus” e a porta do céu, por isso chamou aquele lugar de Betel, que significa Casa de Deus (28, 10-19).

Jacob chega a Haran, à casa de seu tio Labão e ao conhecer a sua filha Raquel, ela a ama desde o primeiro instante. A forma como conhece Raquel é peculiar, pois existe uma certa regra para os rebanhos de ovelha beberem água, pois todos precisam estar juntos com os seus rebanhos, para que todos tenham acesso igualitário à água. Ao ver Raquel, a bela pastora de ovelhas, Jacob, procurando galanteá-la, usa e mostra sua força[10], retirando a pesada pedra da entrada do poço, para que Raquel dê de beber ao rebanho de seu pai (29, 9-12).

A paixão por Raquel traz um problema grave. Sem dinheiro para pagar o dote pelo casamento, Jacob oferece ao seu tio o total de sete anos de trabalho em troca de Raquel, no que é prontamente atendido (29, 15-19).

Mas no dia do casamento, sem que ele saiba, quem Labão lhe entrega por esposa e ele consuma o casamento é a irmã mais velha de Raquel, chamada Lia. Indignado, Jacob procura o tio, e agora sogro Labão, e reclama do ocorrido. Labão alega o costume local que o obriga a casar primeiro a mais velha, para primeiro casar a mais nova. Diante do impasse, Labão propõe um novo acordo que é aceito por Jacob. Ele dará Raquel como esposa a Jacob, logo após a semana de bodas, mas Jacob terá de trabalhar por mais sete anos, totalizando 14 anos de trabalho pelas duas esposas (29, 20-29).

Eventualmente, o engano de Jacob pode parecer estranho ao leitor moderno. Mas é preciso entender os rituais de núpcias em tempos antigos, com a mulher adornada por inúmeros véus, pendentes, enfeites, a música, o excesso de bebida, a pouca luminosidade etc., são diversos os motivos que facilitam o razoável engano de Jacob[11].

Enfim, Jacob que por duas vezes enganara seu irmão Esaú, encontrou alguém que lhe enganou de bom jeito.

Era sabido a preferência de Jacob por Raquel em relação a Lia, mas Raquel era estéril, somente Lia lhe dava filhos, que se chamaram Rubem, Simeão e Levi (29 ,31-35). Raquel então se vale do costume mesopotâmico de ter filhos por meio da escrava, expediente usado por Sarah e Abraão, avós de seu marido (Gn 16). Então Raquel entrega sua concubina a Jacob que com ela tem dois filhos, Dã e Neftali (29, 1-8). Diante do fato, Lia também cede sua escrava Zilpa a Jacob, que ela tem os filhos Gad e Aser. Posteriormente Lia ainda teve dois outros filhos, Zebulom e Dina. Por fim, Raquel concebeu e deu a luz a um filho de Jacob que o chamou de José. (29, 22).

Observe que o texto narra uma disputa, conflito familiar intenso e de dias de dissabores entre as irmãs, agora esposas de um mesmo homem.

O episódio das mandrágoras mostra a insanidade da vida familiar de Jacob (30, 14-21).

As mandrágoras eram frutas que tinha, segundo se cria na época um poder afrodisíaco e fertilizante. Ruben filho de Lia lhe traz mandrágoras do campo. Raquel desejando as mandrágoras, pois era estéril, pediu que Lia lhe desse tais frutas. Lia então acusa Raquel de abuso, pois ela já tinha lhe roubado o marido e agora queria até as frutas que seu filho lhe presenteou. Pois bem, Raquel então sugeriu que lhe cederia o direito de sexo com o marido, pois ao que parece as irmãs faziam uma escala com o esposo, em troca das mandrágoras. Aceita a proposta, Raquel ficou com as mandrágoras e Lia se deitou naquela noite com Jacob. O episódio narra uma indignidade completa dentro da família, onde o homem é alugado por uma esposa em razão das mandrágoras dadas àquela que supostamente tinha o direito de se deitar com ele naquela noite. Como consequência pela ação vil de Raquel que alugara o marido, Deus fez Lia conceber mais um filho, para a frustração de Raquel (30 ,14-21)

O texto de Gênesis 29, 25-43, relata o enriquecimento de Jacob diante de seu tio Labão. Não bastou enganar Jacob quando do casamento com Raquel, Labão foi além e mudou várias vezes o salário de Jacob, explorando-o por muitos modos. Jacob então usa de um artifício hipnótico para enriquecer enquanto trabalha para o seu tio e sogro.

Ele já trabalhara para Labão por 14 anos em troca de suas duas filhas, quando então resolve partir. Labão se opõe e ajustam os dois uma forma de pagamento, segundo a qual as ovelhas brancas pertencerão a Labão, e as malhadas e listradas a Jacob. Diante do acerto, Jacob coloca varas listradas e manchadas perto dos locais onde as ovelhas cruzam com os machos e bebem água, com isso nascem mais ovelhas listradas e malhadas que ovelhas brancas. Claro que não é a magia que favorece a Jacob, mas a providência divina, que vê a exploração injusta que Labão submete seu genro (30, 25-43).

A artimanha é descoberta, os filhos de Labão provocam o pai e as relações com Jacob ficam ruins. Mais uma vez, Jacob terá de fugir.

Brasília – DF, 13 de fevereiro de 2024. Memória Facultativa da Sagrada Face.


[1] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. (Organ.). Comentário bíblico (Tradução Barbara Theoto Lambert). 8ª Ed. São Paulo: Loyola, vol. I, p. 77.

[2] Idem, p. 79.

[3] BALLARINI, Teodorico. O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p.115.

[4] [4] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. (Organ.). Comentário bíblico (Tradução Barbara Theoto Lambert). 8ª Ed. São Paulo: Loyola, vol. I, p. 79.

[5] JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia (Tradução Ruy Jungmann). Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 171.

[6] CHAUNU, Pierre. A história como ciência social (Tradução de Fernando Ferro). Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 465.

[7] AQUINO, Rubim Santos Leão de (Organ.). História das sociedades. 3ª Ed. 20ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, p. 96.

[8] BALLARINI, Teodorico. O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p.115.

[9] OPORTO, Santiago Guijarro. GARCIA, Miguel Salvador (Organ). Comentário ao antigo testamento (Tradução de José Joaquim Sobral). São Paulo, Ave Maria, 1997, vol. I, p. 26.

[10] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. (Organ.). Comentário bíblico (Tradução Barbara Theoto Lambert). 8ª Ed. São Paulo: Loyola, vol. I, p. 79.

[11] [11] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. (Organ.). Comentário bíblico (Tradução Barbara Theoto Lambert). 8ª Ed. São Paulo: Loyola, vol. I, p. 80. No mesmo sentido, valorizando o uso excessivo do vinho temos a opinião de OPORTO, Santiago Guijarro. GARCIA, Miguel Salvador (Organ). Comentário ao antigo testamento (Tradução de José Joaquim Sobral). São Paulo, Ave Maria, 1997, vol. I, p. 26.

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