Nova aliança e a circuncisão
Aos 99 anos, Deus aparece a Abrão repete a aliança, relata o capítulo 17. Digo repete, porque essa aliança já havia sido feita em Gn 12,1 e 15. A novidade é que agora no capítulo 17 a aliança envolve um sinal que é a circuncisão de todo macho na casa de Abrão, o que inclui ele próprio, seus filhos, empregados e escravos.
A circuncisão consiste na retirada do prepúcio, que é a pele que envolve a glande do pênis do homem. Segundo o mandamento dado a Abrão, todos os homens deveriam ser circuncidados, e a partir dali, todas as crianças do sexo masculino, deveriam ser circuncidados ao oitavo dia de nascimento (17, 4-14). A circuncisão seria o sinal externo da aliança de Deus com Abrão, devendo sofrer pena capital aquele que não se deixar circuncidar (17, 14). O texto de Gn 17, 23-27 afirma que Abrão deu cumprimento integral ao pacto celebrado com Deus.
Nesse anúncio de aliança, além da circuncisão, outro elemento relevante foram as mudanças do nome de Abrão e Sarai, para Abraão e Sarah (17, 15-22), quando então Deus lhe promete um filho.
Aparição em Membré – Novo anúncio de aliança e nova promessa de um filho
Mais uma vez o texto do Gênesis anuncia uma aparição de Deus a Abraão e a promessa de um filho dele que seria gerado por meio de Sarah, sua esposa, nada obstante a narrativa de igual promessa no texto anterior (17, 15-22).
Desta feita, a aparição se por meio de três estrangeiros em viagem, que aparecem a Abraão na região do Carvalho de Membré (18, 1-3). Os estrangeiros são tratados com extrema benevolência por parte de Abraão, que lhes oferece água, bolos e uma refeição rica e farta (18, 4-8), como de costume entre os semitas.
Neste momento, os estrangeiros indagam por Sarah e dizem que voltarão em um ano, quando então Sarah terá tido um filho de Abraão (17, 9-12). Sarah riu, pois ambos eram idosos e em sua juventude ela fora estéril. Os visitantes percebem que Sarah duvida da predição, pois riu, ela nega o riso, mas eles reafirmam o riso (17, 13-15). Mais tarde, quando Sarah tiver um filho, ela o chamará de Isaac que significa riso, pois ela vai se lembrar que quando foi feita a promessa ela riu.
Essa aparição na forma de três homens é uma manifestação sobrenatural (teofania) de Deus a Abraão, quando três anjos, assumindo a forma humana lhe aparecem para anunciar o nascimento do filho.
A intercessão de Abraão, a destruição de Sodoma e Gomorra e o incesto de das filhas de Ló
A narrativa da intercessão de Abraão pelas cidades de Sodoma e Gomorra se coloca como um prenúncio da misericórdia de Deus, um atributo que será exercido em toda a história da revelação em favor do pecador que se arrepende de seus pecados (18, 17-33)[1].
Diante do anúncio de que os pecados de Sodoma e Gomorra são de tal forma intensos que elas serão destruídas. Abraão então pergunta a Deus se ele ferirá os justos e injustos de uma mesma maneira, pois é possível a existência ali de cinquenta justos. Diante da resposta negativa de Deus, Abraão insiste que Deus não destrua as cidades caso existam ali 40 justos; e também para o caso de existirem ali 30 justos; e também para o caso de existirem ali 20 justos, e por fim, para o caso de ali existirem apenas 10 justos (18, 17-33).
A questão não é exatamente o número de justos, mas a infinita misericórdia de Deus que estará sempre pronta a ser posta em ação, na forma do acolhimento e do perdão, ainda que seja por uma só pessoa que se arrependa.
A destruição de Sodoma e Gomorra, uma cidade tomada pelo pecado e por toda sorte de maldade e impureza, não é incompatível com a misericórdia de Deus, pois ela retrata uma sociedade que obstinadamente afastou-se da reta consciência e buscou de forma ostensiva e concreta toda sorte de maldade.
Ló, o sobrinho de Abraão, é um residente em Sodoma, e nada obstante, a impureza dos seus habitantes, Ló guarda certo senso de justiça, em razão do aprendizado que teve do seu tio Abraão, no período que com ele conviveu.
Então dois anjos são enviados à casa de Ló, com o objetivo de levar a salvo toda a família, diante da iminente destruição da cidade (19, 1-3). Os homens da cidade, sabendo da chegada de “estrangeiros” à casa de Ló, vão até lá com a intenção de prática de atos homossexuais (17, 4,5). Nem mesmo o fato de Ló oferecer-lhes as filhas para a sua satisfação, conteve a intenção dos habitantes de Sodoma (17, 6-9), que foram feridos com uma cegueira por parte dos anjos (17, 10). O pecado dos atos homossexuais será reprimido por ocasião da Lei Mosaica entre o povo de Israel, segundo consta no Levítico 18, 22 e 20, 13.
Nesse momento, os anjos insistem que Ló, sua esposa, filhas e seus futuros genros deixem a cidade, sem olhar para trás, pois Deus a destruirá. Dispostos a saírem dali, Ló deixa para trás seus futuros genros, que não acreditam em suas palavras (17, 14). Durante a fuga, Deus fez chover sobre as cidades de Sodoma e Gomorra enxofre e fogo. A mulher de Ló, desobedecendo aos anjos, enquanto fugia, olhou para trás, sendo transformada em uma estátua de sal (19, 26).
Após a destruição de Sodoma e Gomorra, Ló e suas filhas passam a viver na região de Segor, uma cidade a nordeste do Mar Morto. Como os futuros genros de Ló ficaram e pereceram em Gomorra, as filhas de Ló, julgando que não existam homens dignos para se casarem com elas, preferem a prática do incesto, coabitando com o próprio pai, para então ter filhos e manter a sua descendência.
Esse caso de incesto é narrado em Gn 19, 31-36. Segundo esse relato, em épocas distintas, as filhas de Ló o embriagaram e mantiveram relações sexuais com ele, ficando grávidas e gerando filhos a partir do próprio pai. A filha mais velha, chamou o seu filho de Moab, que deu origem aos Moabitas, enquanto a filha mais nova chamou o seu filho de Bem-Amon, que deu origem aos Amonitas (19, 37-38).
O incesto nesse nível de parentesco, entre pais e filhos, já era àquele tempo tido como uma prática indevida, tanto assim que será punido pelo Código de Hamurabi, vigente poucas décadas depois de tal acontecimento. Mas é preciso ver tais atos com certa parcimônia, para aqueles dias, em que a questão da descendência tinha uma importância relevantíssima, havendo ainda a prática de somente se casar entre pessoas aparentadas. As filhas de Ló estavam vivendo com o pai e longe de qualquer clã ou família aparentada, sendo levadas ao desespero da necessidade de manter descendentes.
Aparição em Gerara
A vivência de Abraão em Gerara, cidade localizada próxima da atual cidade de Gaza, na Palestina, vai repetir a situação vivenciada no Egito (12, 10-20), pois aqui também Abraão, temendo Abimelec, o rei de Gerara, fez saber que Sara era sua irmã e não sua esposa, fato que faz o Abimelec levar Sarah para o seu harém (20, 1-2).
Avisado em sonho, Abimelec devolve Sarah a Abraão e protesta a sua boa fé diante dele, porquanto, o próprio Abraão dissera que Sarah era sua irmã (20, 5-10). Abraão se justifica dizendo temer por sua vida, ademais, a sua mentira não foi completa, pois efetivamente Sarah era sua meia-irmã, pois era filha de seu pai, mas não filha de sua mãe (20, 12).
Nascimento de Isaac e expulsão de Hagar e Ismael
O cumprimento da promessa divina se faz por meio do nascimento de Isaac, filho de Abraão e Sarah (21, 1-7). O nome de Isaac, dado ao filho de Abraão e Sarah significa “riso”, pois Sarah riu quando o anjo de Deus disse que ela teria um filho da velhice (17, 13-15).
Isaac cresce e passa a ter uma boa relação com seu meio-irmão mais velho, Ismael, filho de Abraão com a escrava Hagar, o que reacende os ciúmes e a ira de Sarah até a situação se tornar insustentável, até que ela obriga Abraão a expulsar da família a Hagar e ao seu filho Ismael (21, 8-10).
Expulsa do clã familiar, Hagar e seu filho Ismael são socorridos por um anjo e tem suas vidas preservadas. Ismael cresce e se torna homem e passa a ter sua própria família (21, 20-21).
A questão da expulsão de Hagar pode ser vista sob a ótica de um provável costume da época, que mais tarde vai se tornar norma, na forma do Código de Hamurabi[2], em seu art. 146. Segundo essa norma, caso uma mulher estéril cedesse a seu marido uma escrava como concubina, e essa arvorasse para si a condição de esposa, ela será vendida, mas se a escrava gerou filhos, ela será marcada como escrava.
Ora, pela leitura do texto bíblico, isso foi exatamente o que aconteceu. Uma vez tendo gerado Ismael, Hagar passou a desprezar a sua senhora Sarah, nessa condição de senhora. Como ela gerou um filho a Abraão, ela não poderia ser vendida, mas deveria ser marcada e contada como escrava, isto é, perderia a condição de concubina e voltaria a ser reduzida à condição de escrava. Sarah agiu com relativo senso de justiça nesse contexto. Com efeito, não podendo vender Hagar como escrava, ela preferiu expulsá-la de sua casa. Embora a expulsão possa parecer um gesto desumano, na verdade não foi nada desumano, pois a expulsão resultou na alforria de Hagar da condição de escrava.
O sacrifício de Abraão
O capítulo 22 narra em seus versículos 1-19 um tema de grande complexidade e profundo significado religioso e antropológico – o sacrifício de Abraão.
O escritor do Gênesis diz que Deus pôs Abraão à prova pedindo que ele lhe oferecesse em sacrifício o seu filho Isaac (22, 1-2). Sem questionar, Abraão, que nessa época habitava em Bersabéia[3] (22, 19), cumpre integralmente a ordem, viajando com Isaac e dois servos para o local indicado por Deus. Ao chegar, Abraão deixa em um lugar os servos e sobe ao monte com o filho Isaac, a lenha e o cutelo para o sacrifício.
A caminho do local final, o próprio Isaac indaga ao pai, dizendo que estão ali todos os objetos para o sacrifício, mas não o cordeiro. Sem lhe dizer que ele próprio faria as vezes do cordeiro, Abraão se limita a dizer que “Deus proverá o cordeiro” (22, 6-8).
Lá chegando, Abraão prepara o sacrifício e quando vai imolar seu filho com o cutelo, um anjo lhe segura pela mão impedindo a morte de Isaac, quando nesse momento aparece, preso pelos chifres a um arbusto, um cordeiro, que é tomado por Abraão e oferecido a Deus em holocausto (22, 11-13). Abraão chama então esse lugar de “Iahweh Proverá” (22, 14). Como recompensa pela fidelidade extremada de tal gesto, Deus reitera todas as promessas feitas a Abraão anteriormente (22, 18).
O texto é impressionante e causa certa perplexidade, a começar pela própria aparente incoerência entre a promessa de construir uma grande nação, a partir de Isaac, e, ao mesmo tempo, pedir o sacrifício de Isaac. De idêntico modo, o texto causa certa perplexidade pelo seu próprio conteúdo que é a prática de sacrifícios humanos.
Os sacrifícios humanos foram uma prática em algumas culturas da antiguidade, sendo os casos mais recentes verificados entre os Astecas, quando do início da colonização americana no início do século XVI. Na legislação mosaica, que virá no século XIII, cerca de 600 anos depois de Abraão, tal prática será severamente proibida. Ora, não se pode imaginar que Deus tenha mudado de opinião quanto ao tema, razão pela qual, devemos afirmar que Deus jamais aceitaria a imolação de Isaac, jamais aceitaria um sacrifício humano.
A prova de que Deus jamais permitiria o desfecho da imolação de Isaac nos é dada pelo texto de Gn 22, 1, no sentido de que Deus estava pondo Abraão à prova, portanto, o sacrifício em si jamais ocorreria. Obviamente que para a Abraão que não sabia se se tratar de uma prova, a vivência da experiência foi dramática.
O túmulo dos patriarcas
O capítulo 23 narra a morte de Sarah aos 127 anos, quando então Abraão procura adquirir um local para o sepultamento de sua esposa. O pedido de Abraão é realizado com muita humildade, dispondo-se a pagar pela terra onde será sepultado o corpo de Sarah, e embora os seus proprietários se neguem a receber em um primeiro momento, Abraão insiste em realizar o pagamento e eles aceitam, realizando assim o sepultamento de Sarah.
Biblistas de renome[4] não conseguem perceber uma importância maior na descrição do capítulo 23, no que diz respeito à aquisição do imóvel para servir de sepultura à Sarah, e mais tarde, ao próprio Abraão.
Casamento de Isaac
Após a morte de Sarah e a velhice de Abraão já presente, será preciso providenciar o casamento de Isaac, para então ser garantido a Abraão a descendência, conforme Deus lhe prometera. Abraão então encarrega o seu servo mais velho, a providenciar uma mulher digna de se casar com seu filho, segundo o costume da época (24, 1-9).
O servo de Abraão vai então à terra Harran, onde viviam os parentes de Abraão. Ele então propõe a Deus em oração uma forma de reconhecer uma mulher digna de se casar com Isaac, recaindo essa escolha em Rebeca, filha de Batuel, filho de Melca, a mulher de Nacor, irmão de Abraão. Em outras palavras, Nacor irmão de Abraão, é o avô de Rebeca, sendo Abraão tio-avô de Rebeca, que passa a ser prima de Isaac, com quem irá se casar (24, 10-21).
O texto do capítulo 24, 22-49 narra todo o ajuste e informações e tratados realizados entre o servo de Abraão e a família de Rebeca, que compreendem ser uma vontade de Deus tal união (24, 50). Também a própria Rebeca, uma vez indagada se pretende aceitar a proposta de casamento, responde com clara disposição de aceitar (24, 58), tendo imediatamente partido com o servo de Abraão e se casado com Isaac (24, 66-67).
A beleza da narração, inclusive o ato encantamento de Rebeca quando vê o seu futuro marido, representado pela curiosidade e pela leveza e beleza do ato de cobrir-se com o véu (24, 64-65) serve como um exemplo do amor conjugal, que mais tarde será um mandamento de São Paulo aos esposos (Ef. 5, 22-26).
Brasília, 06 de fevereiro de 2024. Memória de São Paulo Miki e seus companheiros mártires.
[1] BALLARINI, Teodorico. O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p.110.
[2] [2] Código de Hamurabi, art. 145 in LIMA, J. B. de Souza. As mais antigas normas de direito. Valença: Editora Valença, 1980, p. 26.
[3] Cidade localizada na região do Negueve, mais ao sul do atual Estado de Israel.
[4] BALLARINI, Teodorico. O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p.113.