Leitura das Sagradas Escrituras 2024
Livro do Gênesis – A História de Abraão – Capítulos 12-16
A História de Abraão constitui um tema importantíssimo no estudo das Sagradas Escrituras e da revelação, pois ela é o marco que divide propriamente a proto-história da revelação da história da revelação propriamente dita. Com outras palavras, com a história de Abraão, percebemos uma ação mais concreta de Deus, ingressando na história do homem, inaugurando uma via mais histórico-racional de sua revelação à humanidade.
CAPÍTULO 12
O Livro do Gênesis é dividido em duas grandes partes, a saber, a proto-história e a História dos Patriarcas, sendo essa última subdividida em História de Abraão (Gn 12- 25,18), História de Isaque (Gn 25,19-35) e História de Jacob (Gn 25,19-50,14).
Abraão, originalmente denominado Abrão[1], que significa a partir do hebraico tem como significado “pai excelso”, “pai ilustre”, “pai elevado”, é um personagem que surge nas Escrituras como filho de Terah, descendente de Sem, filho de Noé (Gn 11, 10-32), habitante de Ur[2], região da Caldeia[3], próxima ao Golfo Pérsico, que é determinado momento emigra para região noroeste e vai viver com seus filhos Abraão, Nakor e Haran em Harran na Mesopotâmia[4], a mais de 1.000 km, de Ur.
1. Narrativa Bíblica
O capítulo 12 do Gênesis se inicia com a vocação de Abrão. Deus chama Abrão e o manda emigrar da casa de sua família, para uma terra que lhe será mostrada (12, 1-9); em razão de uma fome na terra, Abrão emigra para o Egito (12 ,10-20). Abrão e seu sobrinho Ló se separam (13). A guerra dos quatro reis (14). A promessa e aliança de Deus com Abrão (15). O nascimento de Ismael (16).
2. Análise do Texto
A questão mais intrigante acerca de Abrão é que ele próprio e sua família eram, como de comum aos povos da época, adeptos do politeísmo, fato que era sabido por seus descendentes. Josué, que substituiu Moisés na liderança dos descendentes de Abrão durante o êxodo do Egito, vai declarar essa condição mais de 800 anos depois de Abrão (Js 24, 2). Nada obstante esse passado politeísta de Abrão, não sabemos de que modo, em algum momento, Deus vai se revelar a Abrão, que por sua vez vai abandonar o politeísmo e não apenas crer em um Deus único, mas a partir dele surgirão as três principais religiões monoteístas atuais (Judaísmo, Cristianismo e o Islamismo).
Como se deu tal revelação? Deus falou diretamente a Abrão? Falou por meio de anjos? Falou em sonhos? Não sabemos a resposta, não existindo qualquer documento escrito ou tradição oral, afirmando de maneira peremptória de que forma Deus se revela a Abrão. Tão somente nos diz o texto de Gn 12, 1-2, que Deus disse a Abrão: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome; sê uma benção!”
De algum modo, podemos pensar que essas manifestações de Deus a Abrão eram verdadeiras teofanias[5], manifestações capazes de provocar uma reação, seja de resposta imediata em obediência, de fé e de mudança de vida.
A promessa feita a Abrão é de fazer dele uma grande nação, um grande povo com um nome famoso sobre a terra. Essa promessa no aspecto subjetivo, levando-se em conta apenas a pessoa de Abrão e sua família, já algo grandioso, todavia, sabemos que a promessa de Deus vai além de simplesmente abençoar Abrão.
Com efeito, o que existe aqui é uma importante etapa da revelação de Deus ao homem, na medida em que Deus está separando uma pessoa, para construir uma família, que formará um clã, que formará tribos, que formará um reino, que se desenvolverá a tal que, assim que chegar o tempo oportuno, o próprio Deus nascerá de uma mulher, desse povo, de uma mulher descendente de Abrão, para culminar com todo o processo de revelação de Deus ao homem. Mas essa revelação não se limita à descendência de Abraão, pois a parte final da bênção quando Deus diz que “em ti serão benditas todas as nações da terra, apontam para a universalidade da salvação. Tanto assim, é que São Paulo na Carta aos Gálatas explica que todos os que creem em Jesus Cristo são filhos de Abrão pela fé (Gl 3, 6-9). Com outras palavras, Deus escolhe Abraão para ser o pai do povo judeu, por meio do qual vai se encarnar na pessoa de Jesus Cristo. Então Abrão é pai dos judeus, segundo a descendência biológica, e pai de todos os que creem em Jesus Cristo pela fé.
Assim, o chamado de Abrão reveste-se de uma importância única na história da revelação, porquanto, o que estamos vendo aqui é uma importante etapa desse processo de revelação que vai desembocar na encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo.
2.1. Peregrinação de Abrão
É interessante anotar aqui que Deus não chama Abrão de Ur dos Caldeus, como normalmente se pensa, pois antes desse chamado, Terah e seus filhos, dentre eles, Abrão já haviam emigrado de Ur dos Caldeus para Harran. Dessa forma, o chamado de Deus é que Abrão saia de Harran e vá para a terra a ser mostrada, que é a terra de Canaã, ao sul de Harran.
Em razão de uma fome na terra de Canaã, Abrão desce para o Egito (12, 10-20). Uma vez chegando ao Egito, teremos um importante incidente na vida de Abrão, o que vai revelar a sua frágil humanidade, nada obstante, ser um homem obediente e temente a Deus. Temendo que Sara seja atraída para o rol de concubinas do Faraó, Abrão a convence que ela deveria passar-se por sua irmã, pois temia ser morto, caso o Faraó a tomasse por concubina.
Assim efetivamente foi feito. Sarah foi vista pelo Faraó como uma bela mulher, sendo ela levada ao palácio e sendo Abrão extremamente favorecido pelo soberano egípcio em razão da beleza de sua esposa, que o Faraó a tinha como irmã (12, 14-16). Tal situação leva a ira de Deus contra o Faraó, com uma série de castigos. De algum modo que a Bíblia não nos conta o próprio Faraó percebe que Sarah é esposa de Abraão. Temendo maiores castigos ele devolve a mulher a Abrão, mostrando-se mais temente a Deus que o próprio casal (12, 15-19). Esse incidente marca o fim da temporada de Abrão no Egito (12, 20). Com isso, Abrão torna à terra de Canaã, para onde Deus o tinha enviado originalmente (13, 1).
O episódio de submeter Sarah a se tornar uma possível concubina do Faraó deve ser interpretado de maneira simples, tal qual está descrito. Trata-se de uma fraqueza de Abrão[6]. Ele que com tamanha disposição obedeceu a Deus quando do seu chamado, agora teme por sua vida, e, em lugar de confiar em Deus, busca em sua própria experiência, uma estratégia de sobrevida[7].
2.2. Fixação de Abrão, a separação de Ló e as promessas
Abrão é apontado no texto de Gn 13,1-4 como um homem muito rico, possuidor de um enorme patrimônio em termos de animais, tendas, camelos, bois, jumentos, escravos, ouro e prata. De igual modo, seu sobrinho Ló, também é um homem muito rico (13,5). A caminhada de dois homens ricos, com grande patrimônio levará ao surgimento de algum tipo de conflito de interesses, razão pela qual, eles se separam, cabendo a Ló o direito de escolher o seu lugar e pra onde quise ir (13, 8-9). Essa concessão que Abrão faz a Ló, no sentido de ele escolher a melhor terra, cabendo a Abaão qualquer outra, com exceção daquela que o sobrinho escolher, é uma demonstração de fidalguia, generosidade e confiança em Deus por parte do patriarca[8].
2.3. A campanha dos quatro grandes reis
O capítulo 14 parece um texto estranho ao conjunto narrativo de Abrão e parece ter sido inserido posteriormente. Com efeito, ele não guarda uma harmonia com a peregrinação de Abrão e sua fixação na terra de Canaã. Ao que parece, a função desse texto é meramente literária e faz parte de uma narrativa de engradecimento de um líder de um povo, apresentando-o como um guerreiro, como um líder militar, um poderoso conquistador. Ló, o sobrinho de Abrão de quem tinha se separado (Gn 13) é feito prisioneiro (Gn 14, 12-16) e quando Abrão fica sabendo, ele sai em socorro de seu familiar, levando consigo os seus mais ditosos homens e guerreiros (14,14-16).
2.4. Melquisedec
Melquisedec é um personagem singular, misterioso, místico que aparece a Abaão e terá um papel igualmente singular, mesmo que apenas referencial, na história da revelação (14,17-20).
Ele é apresentado como Rei de Salém e Sacerdote do Deus altíssimo. Ele se apresenta a Abrão com pão e vinho, e então pronuncia uma em favor de Abrão, que lhe dá o dízimo de tudo quanto possui. O professor Alberto Colunga[9] anota que a visita misteriosa de Melquisedec, após a separação de Abrão e Ló, bem como as bênçãos proferidas em favor de Abrão, constituem uma recompensa de Deus à generosidade com que Abrão conduziu a separação de seu sobrinho Ló.
Existe uma tentativa de alguns intérpretes de relacionar Melquisedec à pessoa de Jesus, como uma espécie de mais uma das teofanias abraâmicas.
Os elementos que permitiriam essa comparação são o caráter sacerdotal do altíssimo de Melquisedec; o fato de ele ser Rei de Salém, em uma alusão à Jerusalém; a ausência de genealogia de Melquisedec, que parece não ter pai e nem mãe (Hebreus 7, 1-4); a celebração com Abraão por meio de pão e vinho, em uma alusão à Eucaristia; além de uma clara alusão a esse personagem por parte de São Paulo na sua Carta aos Hebreus 7,3.
2.5. Promessas e aliança divinas
O texto de Gn 15 apresenta a segunda menção de uma aliança entre Deus e Abrão, depois da ordem de emigração contida em Gn 12. Aqui Deus aparece a Abrão em uma visão, prometendo-lhe uma grande recompensa e grandes bênçãos, no entanto, Abrão lembra que não tem filhos e sem descendência não haverá memória de seu nome após a morte (15, 1-3).
A promessa a Abrão então é que sua descendência será tão grande quanto as estrelas no céu. Abraão acreditou em Deus e em sua promessa, razão pela qual o texto bíblico diz “e isso lhe foi tido em conta de justiça”, isto é, quando Abrão acreditou em Deus, creu em sua palavra, no que diz respeito à descendência, isso foi considerado por Deus como uma fiel contrapartida por parte de Abraão (15, 6). Por essa razão, é comum referirmos a Abrão como o “Pai na Fé”.
Os animais que Deus pede que sejam expostos depois de mortos, a ponto de serem quase devorados por aves de rapina, simbolizam os descendentes de Abraão que padecerão por 400 anos de escravidão no Egito (15, 7-16). Ao período de 400 anos de escravidão seguirá a libertação e então a fixação definitiva dos descendentes na terra de Canaã (15, 12-20).
Todo esse conjunto de promessas será cumprido e narrado nos últimos capítulos do Gênesis, bem como nos demais Livros do Pentateuco (Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) e no Livro de Josué, Juízes, Livros de Samuel e Livros dos Reis.
2.6. Nascimento de Ismael
Apesar da divina promessa de fazer de Abrão uma grande nação, com descendentes incontáveis, a esposa de Abrão, Sarah, é estéril. Adotando um costume antigo, Sarah oferece a sua escrava Hagar a Abraão para que essa lhe dê filhos, tendo Abrão acolhido a sugestão de Sarah (16, 1-3). Após a gravidez, Hagar passa a tratar Sarah com desprezo, em resposta, Sarah castiga Hagar e essa foge. No entanto, um anjo aparece à Hagar, faz-lhe promessa acerca do sucesso de vida do seu filho, que deverá se chamar Ismael e que será pai de uma grande nação (16, 4-12). Hagar dá a luz a Ismael e esse passa a ser criado não como filho da escrava, mas como filho de Abraão, como era o costume (16, 15).
Aqui é preciso entender esse evento, inicialmente sob o aspecto legal e costumeiro. Abrão viveu por volta do século XIX a.C. A Lei de Moisés, por meio da qual Deus começa a criar uma noção de moralidade dentre os descendentes de Abrão, somente será conhecida por volta do século XIII a.C., o que nos leva a pensar que Abrão viveu por volta de 600 anos antes da Lei.
O regramento jurídico mais conhecido da época de Abrão era o Código de Hamurabi[10], mas esse Rei da primeira Babilônia viveu por volta do século XVII e XVI antes de Cristo, portanto, ele é posterior a Abraão. Mas de todo modo, talvez, os costumes babilônicos, que mais tarde se tornarão lei no tempo de Hamurabi, fossem conhecidos de Abrão. Por certo eram conhecidos, pois Abrão, acabou por seguir esse costume, que veio se tornar o art. 145 do Código de Hamurabi, que diz: “Caso um homem despose uma mulher e esta não lhe der filhos, ele decidindo tomar uma concubina, este homem tomará uma concubina, introduzi-la-á em sua casa; mas essa concubina não será igual à mulher”.
[1] Apesar de Abraão chamar-se originalmente Abrão, no presente texto ele será chamado de Abraão.
[2] Ur é o nome de uma cidade localizada nas proximidades do Golfo Pérsico, entre as fronteiras dos atuais Iraque e Irã. Existem evidências arqueológicas de que as primeiras habitações nessa região, que também é a foz dos rios Tigre e Eufrates, desde 3.000 a.C. cf. JAGUARIBE, Hélio. Um estudo conciso da história. São Paulo: Paz e Terra, v. I, p. 98.
[3] A região da Caldeia, onde se situava a cidade de Ur, como parte da mesorregião da Mesopotâmia, já era habitada há 4.000 anos a.C., tendo sido um dos berços dos primeiros núcleos humanos que se fixaram em um lugar abandonando a vida nômade, cf. [3] BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental (Donaldo M Garschagen). São Paulo: Globo, 4ª ed. Vol. I, pág. 16.
[4] Desde a antiguidade é denominado de Mesopotâmia a região existente entre os rios Tigre e Eufrates com ambos desaguando no golfo pérsico, hoje território do Iraque. O termo Mesopotâmia é a junção das palavras gregas Potamos que significa rio, e Meso, que significa entre, meio, assim Mesopotâmia indica o território entre os rios Tigre e Eufrates.
[5] Teofania, do grego Qeofaneia (teofaneia) um evento místico, onde a divindade se mostra de algum modo perceptível aos sentidos humanos, como por exemplo, a aparição de uma forte luz a Saulo de Tarso no caminho de Damasco e a voz que ele ouve (Atos 9, 3-7).
[6] LEAL, SJ. Juan (Organ.) La sagrada escritura texto y comentario antiguo testamento. Madrid, 1967, vol. I, p. 129
[7] OPORTO, Santiago Guijarro. GARCIA, Miguel Salvador (Organ). Comentário ao antigo testamento (Tradução de José Joaquim Sobral). São Paulo: Ave Maria, Vol. I, p. 75.
[8] LEAL, SJ. Juan (Organ.) La sagrada escritura texto y comentario antiguo testamento. Madrid, 1967, vol. I, p. 133.
[9] COLUNGA, O.P. (Organ.). Professores de salamanca bíblia comentada. Madrid: La editorial catolica, vol. I, p. 181.
[10] Código de Hamurabi, art. 145 in LIMA, J. B. de Souza. As mais antigas normas de direito. Valença: Editora Valença, 1980, p. 25.