Leitura das Sagradas Escrituras 2024
Livro do Gênesis
Capítulo 6, 1-4
O texto de Gênesis 6, 1-4 não é uma continuidade do capítulo 5, mas apenas uma ideia para introduzir o leitor na história do dilúvio que se passará nos capítulos 6-9[1].
O texto de Gn 6,1-4 fala que os “os filhos de Deus”, sentindo-se atraídos pelas “filhas dos homens”, vieram e com elas se relacionaram, gerando filhos poderosos na terra, em algumas traduções fala-se na geração de gigantes.
É que o texto de Gn 6,4 afirma que da união entre os filhos de Deus e os filhos dos homens nasceram Nefilins. A palavra Nefilim advém da palavra hebraica Naphal que significa ele caiu e aparece também em Números 13,33 e Sabedoria 14,6, com o sentido de inimigo de Deus e do povo de Deus. Um antigo escrito que não integra as Sagradas Escrituras, chamado Livro de Enoque afirma que esses “filhos de Deus” eram anjos que desceram dos céus e tomaram para si mulheres pecadoras gerando filhos gigantes e poderosos os Nefilim.
É claro que tal afirmação é um absurdo e esse escrito Livro de Enoque não deve ser levado a sério.
Ao longo da história, em diversas culturas e povos como os egípcios, mesopotâmicos e ugaríticos narram as relações entre “deuses” e seres humanos gerando homens e mulheres com características divinas e humanas, os titãs[2]. A mitologia grega e romana também é rica nesse tipo de narrativa, em que deuses e deusas se relacionam com homens e mulheres gerando filhos semi-deuses, titãs e afins, sendo talvez Hércules o caso mais conhecido, pois ele seria filho de Zeus com a mortal Alcmena.
Então como entender o texto de Gn 6,1-4?
O entendimento de Gn 6,1-4 está na leitura dos textos de Gn 4,8, o crime de Caim contra Abel, que vai gerar o crescimento da violência e da maldade entre os homens e que está retratado no poema de Lameque, um descendente de Caim (Gn 4,23). A partir desses dois textos, observamos que as gerações de Caim se afastaram de Deus e buscaram uma vida de violência e injustiça. Mas Eva deu a luz a um terceiro filho, Seth, que por sua vez foi pai de Enos ou Enós, quando então se passou a invocar novamente o nome do Senhor (Gn 4,26).
Essas leituras mostram que a humanidade se dividiu entre aqueles que se afastaram de Deus (Gn 4,8,23) e aqueles que se voltaram para Deus (Gn 4,26).
Portanto, esses “filhos de Deus” que se sentiram atraídos pelas “filhas dos homens”, tomando-as como esposas e mulheres, são na verdade os descendentes de Enos, aqueles que invocavam a Deus, que se uniram às “filhas dos homens”, que são os descendentes de Caim, que trilhavam o caminho da maldade.
Trata-se, a nosso ver, de uma forma mitológica de demonstração da degradação da humanidade a um grau mais elevado, tanto em matéria de violência, quanto em matéria de uma sexualidade desregrada[3][4]. Esse texto prepara o leitor para a história do dilúvio que se inicia em Gn 6,5 e se estende até o capítulo 10.
Capítulos 6, 5-22; 7-9
O texto do capítulo 6, 5-22 e os capítulos 7 e 8 narram dilúvio de Noé e a salvação dele e de sua família. Nesse sentido, o comentário será feito de forma uníssona como a história do dilúvio.
Narrativa Bíblica
A narrativa descreve a corrupção do gênero humano, desde o pecado de Adão, a violência e sensualidade dominam a terra (5-8). Entretanto, havia sobre a terra um homem justo, Noé e sua família (9-11). Deus anuncia o dilúvio a Noé e ordena a construção da arca, tecendo alguns detalhes da obra (12-16). Marca uma aliança com Noé, prometendo salvar a sua família e um casal de cada animal que existe (17-21), tendo Noé atendido a Deus em tudo (22).
Ao final da construção, Deus manda a Noé entrar na arca com sua mulher, seus três filhos, Sem, Cão (Can) e Jafé, bem como as mulheres de seus filhos e os animais (7, 1-16). Vem então a inundação que dura 40 dias e noites sem interrupção, de tal forma que tudo foi coberto pelas águas, tendo perecido toda a vida que estava fora da arca (17-23). Toda a enchente durou 150 dias (24).
As águas começam a baixar e as montanhas a aparecerem, até que a arca repousa em solo, no monte Ararat, atualmente território da Turquia. Com as águas baixando, Noé então soltou vários pássaros, esperando verificar se havia terra seca (8, 1-12). Após todo esse tempo e espera, Noé então percebe que a terra está seca (13-14), quando então Deus lhe ordena que saia da arca com a sua família e os animais (15-19). Noé constrói um altar e oferece sacrifícios a Deus, que se agrada e promete não mais destruir a terra dessa forma (20-22).
Deus abençoa a Noé e sua família e lhes submete todo o mundo e os seres viventes (1-7), estabelecendo com Noé uma aliança, marcada pelo arco-íris (8-17).
Na última parte da história do dilúvio é inserido um incidente com Cão, filho de Noé, que resulta em uma maldição. Noé planta uma vinha, bebe vinho e se embebeda ficando nu, o que leva Cão a rir-se de seu pai. Sem e Jafé em lugar de zombar do pai bêbado, cobre a sua nudez e mantém o respeito a ele. Após a embriaguez, Noé soube da história e amaldiçoa Cão e seus descendentes (18-28).
Análise dos capítulos 6, 5-22; 7-9
A história do dilúvio não é uma inovação bíblica, tendo vários outros povos e culturas mencionados de forma artística, como é o caso dos mesopotâmicos. É importante conhecer essa realidade, pois enquanto as Sagradas Escrituras nesse texto que estamos lendo, narra a história do dilúvio, em outras culturas bem antigas e até anteriores à cultura hebraica, existem narrativas semelhantes, de um grande dilúvio em todo o mundo.
Além da Mesopotâmia, existem as narrativas dos Puranas (livros religiosos hindus); em Deucalião, da mitologia grega, em mitos dos povos quichés e maias na Mesoamérica, na tribo Lac Courte Oreilles Ojibwa de nativos americanos da América do Norte e entre os chibchas e cañaris, na América do Sul[5].
O atento leitor bíblico diante da história do dilúvio e de Noé, bem como diante das narrativas de outras culturas, acerca de um dilúvio, pode se perguntar: Essas diversas narrativas, inclusive a bíblica, são resquícios de uma antiquíssima mitologia comum a diversos povos? Ou ainda se perguntar: O fato de existirem diversas narrativas em culturas e povos distintos e sem nenhum contato uns com os outros não reforçariam a veracidade de um dilúvio?
Qualquer que seja a resposta as indagações acima, será mais importante para o leitor das Sagradas Escrituras considerar em seu íntimo, qual o ensinamento teológico que existe por detrás da história do dilúvio. E a partir de tais considerações, exercitar o seu pensamento e sua conduta católica no sentido de se aproximar de Deus.
Vejamos que ensinamento podemos retirar da história do dilúvio.
A dicotomia entre a depravação pecaminosa da humanidade e existência do justo Noé e sua família, remonta ao que já dissemos antes, desde a relação Caim e Abel, isto é, uma parte da humanidade vai escolher servir a Deus e andar com ele, enquanto outra parte preferirá seguir seus próprios instintos[6].
Mais importante do que pensarmos na veracidade do dilúvio, com todas as implicações de ordem física, geográfica, climática, biológica e outras, é entender o que podemos aprender com tal descrição. Penso que o essencial na história do dilúvio são os seguintes temas: (i) a tendência pecaminosa presente na natureza humana desde o pecado original, estará ali para sempre e não há nada que se possa fazer para suplantar tal tendência; (ii) nada obstante tal inclinação para o mal, o homem é racionalmente inclinado também a uma vida religiosa, e desde que que ele se esforce minimamente e se incline na direção de Deus, será possível uma caminhada com o Criador, apesar de suas imperfeições e incoerências; (iii) a justiça de Deus sempre existirá e estará pronta a ser exercida contra o homem mau que busca a realização do mal; (iv) Deus será sempre misericordioso para com aquele que o busca e que está disposto a fazer a sua vontade em perfeita obediência; (v) sempre será possível um recomeço na relação do homem com Deus.
O incidente de Cão e a maldição que lhe recai serve-nos para relembrar que mesmo após a ação divina com a benção e a salvação, a possibilidade de falha, a possibilidade de errar permanece entre os homens. Uma vez que todos estão afastados de Deus a partir da queda de Adão, a diferença estará na disposição e efetiva inclinação de alguns para servir a Deus de inteiro coração.
Capítulo 10
O capítulo 10 traz a lista de descendentes de Noé e seus três filhos, é o que se chama na teologia bíblica de “Tábua das Nações”, pois ali estariam as raízes de todos os povos da terra.
Narrativa Bíblica
O texto se limita a apresentar os descendentes dos três filhos de Noé.
Análise do Capítulo 10
O quadro do capítulo 10 apresenta de modo quase pedagógico a distribuição das famílias e povos a partir do Oriente Médio, partes da Europa e África. Podemos observar a partir da narrativa que os filhos de Jafé povoam a Ásia Menor e as ilhas do Mediterrâneo, provavelmente se estendendo para a Europa; os filhos de Cão povoam o sul, o Egito, a Etiópia e a África; enquanto os filhos de Sem se tornam os elamitas, assírios, arameus e os antepassados dos hebreus.
Observe que essa “Tábua das Nações” não busca realizar uma comprovação arqueológica ou antropológica da humanidade sobre a terra. Com efeito, ali faltam os asiáticos, os povos da Oceania e os povos do continente americano. A intenção do autor é mostrar a humanidade salva do dilúvio, ainda que mitológico, espalhando-se sobre a terra, povoando-a e estabelecendo-se por todos os cantos do mundo[7].
Segundo Félix Garcia López[8], o que está inserido nessa “Tábua” é o universalismo bíblico, e por consequência, o universalismo do amor de Deus para com todos os homens. No mesmo sentido, Ballarini[9] afirma que a ideia do texto é mostrar toda a irmandade humana, como alvos do amor de Deus.
Capítulo 11
O capítulo 11, 1-9, narra o mito da Torre de Babel, e os versos 10-32 dão continuidade à descendência dos filhos de Nóe.
Narrativa Bíblica
Os homens falavam uma só língua (11,1), e resolveram construir uma cidade grandiosa, tendo como meta principal uma torre cujo cimo chegasse até o céu (11,3-4). Deus teria visto essa iniciativa como uma ação arrogante da humanidade (11,5-6), tendo então descido e confundido a língua dos homens, de tal modo que não mais se comunicavam (11,7), o que levou à formação de agrupamentos distintos de acordo com o idioma falado (11,8) e isso culminou com a dispersão dos grupos linguísticos sobre a terra (11,9-10). Os versos 11,10-32 dão continuidade à descendência dos filhos de Noé após o dilúvio.
Análise do Capítulo 11
O texto do capítulo 11 é a última narrativa da proto-história e fecha esse período, mas o faz ligando-o a Abraão, que é o patriarca por meio do qual a revelação ganha um contorno mais fluido e mais histórico e consistente. Trata-se de um texto curto, mas belo e cheio de ensinamentos. A cidade e a torre de babel, mais uma vez mostram a arrogância humana com a ideia de “façamos um nome”, aqui mais uma vez a mesma intenção de Eva e Adão no Gênesis de “sermos iguais a Deus”[10], nesse caso representado pela torre que tocaria os céus. A reação de Deus confundindo a língua dos homens frustra o plano e o resultado é a dispersão e povoação de todo o mundo, por povos de acordo com o respectivo idioma. Aqui o autor do texto joga com o nome da torre Babel, que significa confusão, para expressar a forma como Deus reagiu à arrogância humana.
Praticamente todos os biblistas concordam que a história de babel narra a ideia da prepotência e da arrogância humana diante de Deus. E sua colocação no final da narrativa proto-histórica, tem o sinal de ensinar que essa característica humana sempre estará presente na história da humanidade[11].
A parte final do capítulo 11, 10-32, dando continuidade à narrativa da descendência dos filhos de Noé, que começara no capítulo 10, 1-32, tem a função de introduzir o leitor da Bíblia na história do patriarca Abraão.
No texto anterior, capítulo 10, 22-24, temos o início da descendência de Sem, filho de Noé, gerando, dentre outros filhos o Arfaxad. O Arfaxad gera Salé, que por sua vez gera Heber. No texto de agora, 11, 16-26, temos a descendência de Heber até Taré. Pois bem, Taré vai gerar Abraão, o patriarca que da origem ao povo de Israel.
A finalidade desse texto é ligar Abraão a Heber filho de Sem, filho de Noé, marcando assim a origem semita de Israel. Os termos semita e hebreu para designar mais tarde o povo de Israel têm origem nas pessoas de Sem, filho de Noé e Heber, filho de Sem. Mais ao final, nos versículos 27-32 o autor faz um breve prólogo sobre Abraão, que é tratado a partir do capítulo 12 do Livro do Gênesis.
Gabriel Campos, 13 de janeiro de 2024, Memória de Santo Hilário de Poitiers.
[1] BALLARINI, O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p. 102.
[2] CUNCHILLOS, JL. Cuando os ángeles eran dioses. Salamanca, 1976, p. 76.
[3] COLUNGA, O.P. (Organ.). Professores de salamanca bíblia comentada. Madrid: La editorial catolica, vol. I, p. 127.
[4] LÓPEZ, Félix Garcia. Introdução ao estudo da bíblia o pentateuco. São Paulo: Ave Maria, vol. 3ª, p. 73.
[5] BALLARINI, O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p. 101.
[6] LEAL, SJ. Juan (Organ.) La sagrada escritura texto y comentario antiguo testamento. Madrid, 1967, vol. I, p. 84.
[7] BERGANT C.S.A., Diane. KARRIS O.F.M., Robert J. (Organ.). Comentário Bíblico (Tradução Barbara Theoto Lambert). São Paulo: Loyola, 8ª Ed. Vol. I, p. 67.
[8] LÓPEZ, Félix Garcia. Introdução ao estudo da bíblia o pentateuco. São Paulo: Ave Maria, vol. 3ª, p. 79.
[9] BALLARINI, Teodorico. O.F.M. Cap. (Organ.) Introdução à bíblia (Tradução Ephaim Ferreira Alves). São Paulo: Vozes, 1975, vol. II/1, p.102.
[10] LÓPEZ, Félix Garcia. Introdução ao estudo da bíblia o pentateuco. São Paulo: Ave Maria, vol. 3ª, p. 79.
[11] LEAL, SJ. Juan (Organ.) La sagrada escritura texto y comentario antiguo testamento. Madrid, 1967, vol. I, p. 86.