Introdução
O Evangelho Segundo São Mateus nos atrai inicialmente pela sua própria disposição como o primeiro livro do Cânon do Novo Testamento. Com efeito, qualquer pessoa que, manuseando a Bíblia, resolve ir para o Novo Testamento, quase sempre acaba, quase que por instinto e por prática de tudo na vida, começando pelo início do Novo Testamento, exatamente pelo Evangelho Segundo São Mateus.
Como agora iniciaremos a leitura do Evangelho Segundo São Mateus, vamos fazer algumas anotações prévias.
1. Gênero Literário Evangelho
O termo Evangelho é a transliteração do latim evangelium, que tem origem na palavra grega Euaggelion (euanguelion), que significa “boas novas”. É interessante anotar que a palavra Evangelho não é uma palavra exclusivamente cristã, isto é, não é uma categoria cristã [1].
No grego clássico, a palavra Evangelho poderia significar “a recompensa dada a um mensageiro por ter trazido boas novas”, como está em II Samuel, 4,10, na tradução da Septuaginta; poderia significar “os sacrifícios feitos aos deuses por dádivas de coisas novas”; também na Septuaginta é usada para definir “as boas novas da vitória (I Sm3,19) e ainda, “as boas novas do nascimento de uma criança” (Jr 20,15)[2].
Então Evangelho como palavra está situada nesse contexto de novidade, de boas novas, de notícias novas, ela acabou sendo utilizada no Novo Testamento para apresentar a novidade do ensino de Jesus. Todavia, o seu uso no Novo Testamento aconteceu com tamanha relevância, que o termo Evangelho com o significado de boas novas passou a ser tratado como uma nova categoria, aliás, como uma categoria única, a de definir a mensagem de Jesus Cristo, como dizem as palavras de São Lucas acerca de Jesus Cristo como “aquilo que ele fez e ensinou” (At 1,1).
Como muitos foram os escritos acerca da vida de Jesus, além dos canônicos Mateus, Marcos, Lucas e João, e o termo Evangelho foi cooptado pelo cristianismo, enriquecido e singularizado por Nosso Senhor Jesus Cristo, o termo Evangelho acabou também por a designar um gênero literário único no Novo Testamento e na própria cultura ocidental, perdendo assim os seus antigos significados.
Com efeito, então podemos definir e classificar os escritos de São Mateus como escritos de estilo ou gênero literário evangélico.
2. Destinatários Imediatos
Os escritos bíblicos sempre devem ser analisados, quanto aos destinatários, em duas considerações, a saber, os destinatários imediatos, isto é, aquelas pessoas a quem o autor bíblico escreveu e quem queria alcançar; e os destinatários mediatos, isto é, quem seria alcançado por aquela mensagem dada a sua finalidade de expressar a palavra de Deus.
Todo texto bíblico tem como autores mediatos toda a humanidade, pois a Bíblia é parte da revelação de Deus, parte escrita da revelação. Como Deus quer que todos se salvem, todos os seres humanos são os destinatários mediatos da Bíblia.
Resta então saber quem são os destinatários mediatos do Evangelho Segundo São Mateus.
A respeito desse tema concordam quase à unanimidade dos biblistas[3] no sentido de que o Evangelho Segundo São Mateus fora escrito originalmente para os cristãos oriundos das comunidades judaicas. Isto é, aqueles judeus que se convertiam ao cristianismo.
O fundamento de tal observação é a verificação de que São Mateus faz um enorme esforço para provar que Jesus de Nazaré é o Messias prometido desde os tempos de Moisés. A leitura atenta dos Evangelhos segundo São Marcos, São Lucas e São João mostra que esses outros autores não têm tal preocupação, o que singulariza São Mateus nesse aspecto.
O Evangelho de São Mateus já em seus primeiros versos nos apresenta a origem humana de Jesus Cristo, com a sua ascendência até Davi e de Davi até Abraão (Mt 1,1-17). Fica claro o intento do autor em demonstrar ao seu destinatário imediato que Jesus Cristo é um filho de Abraão e o herdeiro do trono de Davi. Ali fica clara pretensão de mostrar em Jesus a realização da promessa abraâmica de fazer bendita, por meio de sua descendência, todas as nações da terra (Gn 12,3). Em seguida, o autor nos apresenta a origem divina de Jesus Cristo, tratando da gravidez virginal de Santa Maria (Mt 1,18), as revelações em sonhos a São José (Mt 1,20-21) e o relacionamento desses acontecimentos ao profetismo judaico (Mt 1,23).
Nos capítulos seguintes toda essa técnica continua, com a criação de uma relação entre o nascimento de Jesus e a estrela avistada pelos Reis Magos (Mt 2,1-2), com a estrela de Judá mencionada por Balaão (Nm 24,17); o nascimento de Jesus em Belém (Mt 2,1) é relacionado à profecia de Miqueias sobre a cidade de Belém em Efraim (Mq 5,1-2); a matança dos recém-nascidos (Mt 2,16) é relacionada com a profecia de Jeremias (Jr 31,15-16); a partida para o Egito e o seu retorno (Mt 2,20-23) é relacionada à profecia de Oseias (Os 11,1).
Como se percebe, São Mateus faz um esforço forte no sentido de demonstrar que Jesus Cristo é o Messias prometido a Israel.
3. Evangelhos Sinóticos
Quem se aproxima da entrada da Catedral Metropolitana de Brasília Nossa Senhora Aparecida se surpreende pela presença de quatro imagens de bronze, com 3 metros de altura, de autoria do escultor italiano Alfredo Ceschiati, representando os quatro evangelistas, a saber, São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João, em uma posição de guarda, como se estivessem recepcionando os fiéis e turistas que adentram à Catedral.
Todavia, um fiel ou turista mais perspicaz e curioso poderá questionar acerca da posição das imagens. É que sendo quatro o número de evangelistas, o escultor poderia dispô-lo dois a dois, buscando aí uma certa harmonia na posição de cada imagem. O escultor, porém, preferiu colocar de um lado três evangelistas – São Mateus, São Marcos e São Lucas – e do outro lado colocou São João, sozinho, isolado dos outros três.
Pois bem, essa disposição dos evangelistas está relacionada a um importante tema de estudo da teologia bíblica neotestamentária, a saber, a questão dos Evangelhos Sinóticos, expressada em uma grande semelhança entre os três primeiros Evangelhos, São Mateus, São Marcos e São Lucas.
O termo sinótico advém do grego Sinótikos, que por sua vez, advém das palavras gregas Sin que significa junto, e Oysis, que significa olhar, ótica, portanto, o termo Evangelhos Sinóticos significa dizer que aqueles Evangelhos que foram redigidos, produzidos sob uma mesma ótica, sob um mesmo olhar, partilhando aí algumas características comuns, pois todos advém de uma ótica comum.
Uma leitura rápida dos Evangelhos permite observar que São Mateus, São Marcos e São Lucas são evangelhos sinóticos, enquanto São João tem uma visão, uma ótica, uma percepção de Jesus de Nazaré toda sua e particular. A questão sinótica visa estudar a semelhança, as dessemelhanças e o acesso às fontes por parte dos Evangelhos Sinóticos[5]. Os nossos estudos e comentários futuros nos Evangelhos explorarão com cuidado os traços comuns dos Evangelhos Sinóticos e a abordagem peculiar de São João.
Por essa razão as imagens de bronze na entrada da Catedral de Brasília agrupam de um lado São Mateus, São Marcos e São Lucas, como sinóticos, e do outro lado da fila, isoladamente, a imagem de São João.
4. Denominação
A denominação do primeiro Evangelho Canônico como Evangelho Segundo São Mateus, do grego Euaggelion kata Maqaion, assim como todos os outros evangelhos, advém da tradição de imputar ao possuidor do respectivo nome a autoria daquele Evangelho. Assim, o nome Evangelho Segundo São Mateus é uma forma de atribuir a Mateus, um dos doze Apóstolos, a autoria desse Evangelho.
5. Autoria
Surgiu no século II a tradição de se atribuir o primeiro Evangelho ao Apóstolo São Mateus. No entanto, como a maioria dos livros da Bíblia, a autoria de Mateus também é discutida, existindo argumentos em ambos os sentidos.
A autoria atribuída a São Mateus advém de antiquíssima tradição e testemunho histórico. Em primeiro lugar o testemunho de Papias de Hierápolis (70-155) que é citado por Eusébio[6], é o primeiro líder do século II a atribuir a autoria do primeiro Evangelho a São Mateus. Santo Irineu de Lyon (130-202), também citado por Eusébio[7], atribui a São Mateus a autoria do Evangelho que leva o seu nome. E ainda é citado por Eusébio[8] como defensor da tese de que São Mateus o Apóstolo é o autor efetivo do Evangelho que leva o seu nome, Orígenes (185-253).
Os biblistas de fôlego sustentam que o Evangelho Segundo São Mateus fora escrito entre o ano 70 e o ano 80 de nossa era. Nesse grupo situam-se Daniel Marguerat[9], Raymond E Brown, Joseph A Fitzmeyer e Roland E Murphy[10], Santiago Guijarro Oporto e Miguel Salvador Garcia[11], M Eugene Boring[12], Dianne Bergant e Robert J Karris[13].
Capítulo 1
O capítulo 1 de São Mateus pode ser dividido em duas partes, a saber, (i) a origem humana de Jesus, em Mateus 1,1-1,17; e a origem divina de Jesus, em Mateus 1,18-25.
A Origem Humana de Jesus
O primeiro passo de São Mateus é convencer os seus leitores, comunidades judaicas convertidas ao Cristianismo, que Jesus de Nazaré é verdadeiramente descendente do rei Davi e de Abraão, satisfazendo assim um dos requisitos básicos para o seu reconhecimento como o Messias prometido.
É importante, salientar que no primeiro versículo do seu Evangelho, e, portanto, no primeiro versículo do Novo Testamento, São Mateus ao definir a origem judaica, davídica e abraâmica de Jesus Cristo, também o qualificará como o Messias, identificando-o como “O Cristo”. Os dois nomes por meio dos quais São Mateus identifica o nosso Senhor são relevantes para o deslinde do seu Evangelho. Com efeito, o nome Jesus, do grego Iesous é a forma grega para Josué, que significa “Javé Salva” ou “Javé é Salvação”, do hebraico Yeshuah; enquanto o título “Cristo”, do grego Cristós, é a tradução do hebraico מָשִׁיחַ (Messias), que significa “ungido”. Com isso, São Mateus, no primeiro versículo, do primeiro capítulo do seu Evangelho introduz o seu leitor na questão principal a ser exposta, Jesus de Nazaré, descendente de Davi e de Abrão, é o Cristo, o Messias, o Ungido de Deus.
A extensa genealogia apresentada é composta de 42 gerações, sendo dividida em três grupos de 14 gerações, correspondendo a três períodos distintos da história de Israel. O primeiro grupo de 14 gerações se inicia com Abraão e segue até o Rei Davi (Mt 1,2-5; o segundo grupo de 14 gerações se inicia com o Rei Davi e segue até a deportação para a Babilônia (Mt 1,6-11), e o terceiro grupo de 14 gerações se inicia com a deportação para a Babilônia e segue até Jesus Cristo (Mt 1,12-16).
Apesar de extensa a lista de gerações apresentada por São Mateus não é completamente literal, no sentido de conter todas as pessoas da linha geracional, mas tem o cuidado de manter a integralidade da linha de gerações.
A conclusão da genealogia guarda uma singularidade, quando São Mateus altera o modelo original x gerou y, para dizer, “Jacó gerou José, marido de Maria, de quem nasceu Jesus” (Mt 1,16). Esse versículo foi elaborado com o cuidado especial por Mateus, para evitar dizer que Jesus era filho biológico de José, mas tão somente de Maria, sendo José o seu pai adotivo, preparando o leitor para o texto seguinte que é a origem divina de Jesus[14].
A Origem Divina de Jesus
A origem divina de Jesus ou a história do nascimento divino de Jesus é um complemento da sua genealogia, razão pela qual o capítulo 1 de São Mateus é um todo uniforme e como tal deve ser lido e compreendido. E apesar de podermos dividi-lo entre a “origem humana” e a “origem divina”, essas duas divisões servem perfeitamente para uma única verdade: por meio do milagre da encarnação, nós contemplamos o Deus Todo-poderoso entrando milagrosamente na humanidade, para fazer parte integrante da família humana.
Ainda que estejamos lendo São Mateus, o recurso ao evangelho da anunciação de São Lucas 1,26-38 é inevitável e necessário, para concluirmos que, sob a ótica de Maria, não existiam surpresas, uma vez que o diálogo com o anjo foi claro e esclarecedor. A partir de então, resta-nos o desafio de considerarmos isoladamente a posição de José na história, pois ele é omitido por São Lucas e São Mateus não o esclarece por completo.
O texto inicial da origem humana de Jesus, segundo São Mateus 18a, informa que José e Maria estavam ajustados para o casamento para dali a um certo tempo, segundo a tradição judaica de seu tempo, mas ainda não coabitavam, isto é, não viviam maritalmente juntos, sendo que nesse tempo de espera do casamento, Maria se achou grávida por ação do Espírito Santo (Mt 1,20).
A questão a ser debatida aqui, para o deslinde do texto, é sabermos explorar qual foi a posição, a impressão, a ideia e a surpresa de José, diante da gravidez de Maria? Existem três possibilidades básicas, que nos são apresentadas por Scott Hahn e Curtis Mitch[15], a partir da tradição católica.
A primeira teoria é a Teoria da Suspeita, segundo a qual, José ao perceber que Maria estava grávida, duvidou de sua fidelidade, razão pela qual ele imaginou a possibilidade de divórcio, com fundamento em Dt 24,1-4, mas o anjo veio em seu socorro e revelou a ele o plano divino (Mt 1,20), sendo essa teoria acolhida por São Justino, São João Chrisóstomos e Santo Agostinho. A segunda teoria é a Teoria da Perplexidade, por meio da qual José ficara perplexo porque não conseguia explicar a gravidez, mas também não conseguia imaginar a infidelidade de Maria, razão pela qual, ele pretendia deixá-la em repúdio, mas de forma discreta, sendo São Jerônimo, o defensor de tal teoria. A terceira teoria é a Teoria da Reverência, informando que São José sabia da gravidez como obra do Espírito Santo, mas por extrema reverência a Deus e piedade extremada, José não se considerava digno e nem capaz de tão grande missão, razão pela qual deixa-la secretamente seria uma forma de mostrar a sua indignidade para tão grande missão, tendo o anjo aparecido a ele em sonhos apenas para reforçar aquilo que ele já sabia desde o princípio, sendo São Bernardo de Claraval e Tomás de Aquino os defensores dessa última teoria.
Como a história começa com a notícia de esponsais de José e Maria, mister se faz explicar como se estabelecia um casamento nos tempos de José e Maria[16]. A celebração de um casamento naqueles dias era realizada por meio de dois atos distintos, os esponsais, que era uma cerimônia privada, por meio da qual ajustava-se o casamento para dali a certo prazo, regra geral de um ano, e em seguida celebravam as bodas públicas e solenes, que essencialmente consistia em conduzir a esposa, entre músicas, alegrias e danças, à casa do esposo.
Nesse período de tempo, entre os esponsais de José e Maria, quando então nasce o compromisso de casamento e dever de fidelidade, mas sem a coabitação e sem qualquer possiblidade de prática de atos sexuais, veio Maria achar-se grávida por ação do Espírito Santo.
A Teoria da Reverência defendida por São Bernardo Claraval e Santo Tomas de Aquino é a que mais se adequa à santidade de Maria e ao caráter de São José, sendo, portanto, a teoria adotada nesse trabalho.
A Teoria da Reverência explica que José fora informado desde o início acerca da gravidez milagrosa, da maternidade divina e da encarnação do Filho de Deus no seio da Virgem Maria. Mas sendo um homem justo, humilde e profundamente cônscio de suas limitações, José temeu tamanha responsabilidade, julgou-se indigno de tão nobre missão e incapaz de estar diante da revelação pessoal do próprio Deus.
Na Teoria da Reverência, o senso de justiça em José está em sua humildade de coração. Esse temor não pode ser confundido com um caráter covarde e omisso, mas como um ato supremo de humildade, de reconhecimento de sua limitação e da grandeza da missão que lhe está sendo confiada, assim como fizeram antes Moisés (Gn 3,11), Gideão (Jz 6,12-16), Salomão (I Rs 3,7-8) e Elias (I Rs 19,4).
Deus então envia o seu anjo em socorro de José, para relembrar aquilo que ele já sabia, a geração milagrosa do Filho de Deus no seio de sua prometida esposa, e seu nascimento como parte do plano de Deus para a salvação eterna oferecida a toda a humanidade.
Vejamos como a ação do anjo se adequa com perfeição à Teoria da Reverência.
Despertado do sono, José fez como o anjo determinara e recebeu Maria como sua esposa (Mt 1,24). A adesão obediente de José é imediata e inquestionável, aceitando a missão árdua e dignificante da parte de Deus, imediatamente.
Ao final do capítulo, São Mateus fecha a sua narrativa com o nascimento de Jesus, advertindo que isso se deu sem qualquer ato sexual entre José e Maria, mantendo hígida a narração do nascimento virginal de Jesus Cristo (Mt 1,25).
Capítulo 2
O Capítulo 2 narra a curiosa visita dos três reis magos do Oriente (2,1-12) e a fuga para o Egito e seu retorno (2,13-23).
A expressão “três reis” não consta na Bíblia, isto é, não se diz que eram reis, mas magos, o que deve ser interpretado como estudantes dos astros, intelectuais, estudiosos. Também não se diz que eram três. A questão é que os magos trouxeram presentes caros, inclusive ouro, e foram ao todo três presentes. A partir daí a tradição popular cunhou a ideia de que eram reis e em número de três. A mesma piedade popular, baseada em antiquíssimas tradições e escritos que não integraram as Escrituras, chegou aos nomes dos magos: Melchior ou Belchior, Gaspar e Balthazar. A questão a ser considerada é que esse “acréscimo da religiosidade popular” não tolda o que efetivamente importa com essa mensagem, a saber, a universalidade da salvação.
O plano de Deus ao enviar o seu filho é a salvação de toda a humanidade. No entanto, para se fazer homem, Jesus deveria vir em meio a um determinado povo, uma etnia, uma família. Esse povo que Deus escolheu para, por meio dele, mandar o seu filho foi o povo israelita, os descendentes de Abraão e Sarah.
Jesus não veio ao mundo apenas para salvar o povo israelita, mas para salvar a humanidade, por isso se fala aqui em universalidade da salvação e não em “nacionalidade da salvação”, pois Jesus veio, como já dissemos, para a universalidade da humanidade e não para a nacionalidade ou etnia judaica ou israelita.
A fim de demonstrar tal realidade ao mundo, inclusive aos judeus, dois grandes ensinamentos nos são dados logo no primeiro capítulo de São Mateus. O primeiro são as mulheres estrangeiras presentes na genealogia de Jesus (Tamar, Raabe, Rute e Beteseba), e o segundo são os magos do Oriente, estrangeiros, que sabendo estudar as Escrituras Judaicas, o Antigo Testamento, e os sinais dos céus, souberam identificar o tempo e o lugar do nascimento de Jesus.
Pessoalmente, gosto de relacionar os magos do Oriente com a profecia de Balaão, escrita em uma curiosa história que está narrada no Antigo Testamento, no Livro de Números 24,17, durante o êxodo do povo israelita do Egito para a terra de Canaã, 1300 a.C. Quando Josué conduzia o povo para Canaã e passava pelo reino do moabitas, o Rei de Moab temendo todo aquele povo em seu território, contratou Balaão para amaldiçoar o povo israelita. Balaão era um midianita, uma espécie de mago, feiticeiro, bruxo ou algo semelhante que tinha por ofício abençoar ou amaldiçoar pessoas ou coisas, segundo certa remuneração. Uma vez contratdo pelo Reio de Moab, vai Balaão amaldiçoar o povo israelita que estava naquelas terras em um acampamento. Ao chegar no local, antes de amaldiçoar o povo, Deus inspirou Balaão a abençoar o povo, quanto então ele fala de uma estrela e um novo rei que surgirá dentre os descendentes de Jacob, que é uma forma de você se referir ao povo israelita: “Uma estrela nasce de Jacob, ouço aclamações por um Rei…” (Nm 24,17). Essa estrela, mencionada por Balaão por volta de 1.300 a.C., que anuncia o novo Rei, é exatamente a estrela vista pelos magos do Oriente, anunciando o nascimento de Jesus.
Mateus diz que esses magos vieram do Oriente. Ora, o oriente a partir de Israel aponta para as regiões que hoje se situam o Iraque e o Irã. Nessas regiões existiram grandes impérios na antiguidade, a Babilônia no território que hoje é o Iraque, e a Pérsia, no território que hoje é o Irã. Nos tempos de Jesus, portanto, tempo dos magos, tais impérios não mais existiam, mas existiam os povos ali, a cultura, costumes e tradições babilônicas e persas. Possivelmente, esses magos vieram da Pérsia, atualmente o território do Irã. Os persas tinham uma religião bem organizada e estruturada, chamada Zoroastrismo, que tinha em suas crenças e cultos uma forte ligação com a astronomia.
Mas como sacerdotes do zoroastrismo sabiam tanto sobre a cultura israelita a ponto de acertarem a data e a cidade onde nasceria o Messias prometido?
É preciso lembrar que o povo de Israel, conviveu com os persas partir de 538 a.C., por algumas décadas. Leremos mais adiante no Livro de II Reis que Israel fora invadido pela Babilônia por volta do ano 609 a.C. Mas em 538 a.C. o líder persa Ciro, o Grande, conquistou a Babilônia e “herdou” os escravos israelitas. Durante essa convivência, é possível que os sacerdotes do zoroastrismo tenham aprendido sobre as profecias acerca da vinda do Messias.
Os presentes dados, ouro, incenso e mirra, também guardam um importante simbolismo. Na antiguidade, o ouro era um presente para um rei, o incenso era um presente dado a um sacerdote, representando a espiritualidade, e a mirra, para um profeta (a mirra era usada para embalsamar corpos e, simbolicamente, representava a imortalidade). Dessa forma, os presentes eternizam as três funções de Jesus Cristo: Rei, Sacerdote e Profeta.
A Matança dos Inocentes
Herodes o Rei queria usar os magos para alcançar Jesus e matá-lo, mas os magos voltam por outro caminho, o que enfurece Herodes (2,7-12). No afã de matar Jesus ainda menino, ele manda matar todos os recém-nascidos com menos de dois anos (2,16). Mateus então, no esforço de mostrar que Jesus era o Cristo, o Messias, relaciona esse fato à profecia de Jeremias (2,17-18). Esse episódio também é uma forma de Mateus relacionar Jesus à figura de Moisés, pois esse, quando nasceu no Egito, existia uma ordem para matar todas as crianças recém-nascidas. Mais uma vez, Mateus tentando mostrar ao seu público imediato, judeus recém convertidos ao cristianismo, de que Jesus era o Messias (Ex 1,15-16).
Aqui vale lembrar algo sobre Herodes o Rei da Judeia. Nos tempos de Jesus, quase todo o mundo era dominado pelo Império Romano. Em algumas províncias, por questões políticas, religiosas e culturais, Roma permitia a existência de um “rei fantoche”, “um rei vassalo de Roma”, com uma pequena autonomia, mas nada que afastasse o poder administrativo, jurídico e militar de Roma. Na Província da Judeia, com o fim de diminuir o impacto da dominação, Roma mantinha esse “rei vassalo” que era Herodes, o Grande (73 a.C – 4 d.C.).
A Fuga para o Egito e o Retorno do Egito
Diante do risco causado com a matança dos inocentes, José e Maria fogem para o Egito, depois de um aviso angélico (2,13). Por lá ficaram até a morte de Herodes, quando então, após um aviso angélico, retornam a Israel (2,15). Aqui novamente Mateus relaciona um episódio da vida de Jesus à antigas profecias de Israel, tentando mostrar ao seu público imediato, judeus recém convertidos ao cristianismo, de que Jesus era o Messias (2,15).
Capítulo 3
O batismo de Jesus no Jordão por João Batista é o tema do capítulo 3. João Batista, foi, segundo o Evangelho de Lucas, filho do sacerdote Zacarias e de Isabel, prima de Maria, da família de Aarão. João Batista é último dos profetas que anuncia a vinda do Messias e por isso ele é mais do que especial. Veja bem, desde Moisés, que viveu 1300 anos antes da era cristã, vários profetas anunciaram a vinda do Messias, mas esse anúncio era para um futuro distante, ainda desconhecido. Já João Batista sendo o último profeta, foi ele o anunciador da vinda imediata de Jesus Cristo. Isto é, enquanto os demais profetas anunciavam um Messias que viria em um futuro distante, João Batista anunciou um profeta que veio naqueles dias (3,1-12).
João pregava no deserto batizava no Rio Jordão, quando Jesus se aproxima e pede o batismo. João pregava o arrependimento, a conversão dos costumes, a justiça e a santidade, como modo preparativo para o advento do Messias. Jesus sendo o próprio Deus não tinha pecados, por isso não precisava ser batizado por João, mas deixou-se batizar para identificar sempre e mais com o ser humano.
A síntese bíblica do acontecimento é resumida, mas denota alguns fatores fundamentais no sentimento da experiência de João. Nesta altura, João encontrava-se no auge das suas pregações. Teria vários discípulos e batizava judeus e gentios arrependidos. Neste tempo, os judeus acreditavam que Deus castigava não só os iníquos, mas as suas gerações descendentes. Quando João batizou Jesus, dizendo “este é o Meu filho amado no qual ponho toda a minha alegria”. Refere que uma pomba esvoaçou sobre os dois personagens dentro do rio, e relacionam essa ave com uma manifestação do Espírito Santo.
Capítulo 4
A Tentação de Cristo, narrada em Mateus 4,1-11 é um episódio da vida de Jesus que constitui um grande mistério. Entende-se por mistério aqui aquele acontecimento, cujos significados se expandem para uma realidade muito maior do a própria narrativa.
Em primeiro lugar, compreende-se que Jesus, sem deixar de ser Deus todo-poderoso, assumiu por completo a natureza humana, estando, portanto, suscetível às tentações, mas jamais pecou (Hb 4,15). Portanto, a função desse texto é, inicialmente, mostrar aos cristãos que o próprio tendo sido tentado, a vida do cristão não será diferente, devendo ser pautada por tentações. Mas assim como Jesus venceu a tentação diabólica, cada cristão deve imitá-lo no mesmo sentido.
As tentações foram em número de três:
- Transformar pedras em pão para aliviar a sua fome.
- Estando no pináculo do templo, Jesus é chamado a saltar para que os anjos o salvassem. O diabo cita Salmo 91,11-12 para mostrar que Deus havia prometido auxílio, embora ele implique que o trecho possa ser utilizado para justificar atos presunçosos, enquanto que o salmo apenas promete que Deus irá libertar os que confiarem n’Ele e O seguirem.
- Idolatrar o diabo em troca de todos os reinos do mundo. Lucas explicitamente alega que esta autoridade havia sido anteriormente dada ao próprio diabo.
Podemos analisar aqui as tentações de Cristo sob a mesma ótica da tentação de Eva.
Em primeiro lugar, o ato de transformar pedras em pães nos remetem ao sentido do paladar, do prazer, de saciar alguém que estava em jejum, portanto, com fome. Temos aqui a libido amandi.
Em segundo lugar, lançar-se do pináculo do templo para ser cuidado pelos anjos traduz aquela ideia de ser satisfeito, mas não quanto aos prazeres, como a fome, mas quanto à importância, nesse caso ser cuidado pelos anjos. Aqui temos a libido possidendi que é a quela paixão que nos faz sentir importante aos nossos olhos, o encanto, o maravilhar-se.
Em terceiro, lugar, o Diabo propõe a Jesus que o adore em troca de poder e reinos e posses sem fim, todos os reinos do mundo. Temos aqui a libido dominandi que é aquela paixão que nos leva a desejar as coisas, os bens o domínio de tudo que está em nosso redor.
Como você pode ver, o Diabo não muda a sua estratégia.
Sugiro que você volte ao texto onde fiz os comentários ao capítulo 3 de Gênesis e o releia, tendo como pano de fundo, a tentação de Cristo.
Brasília – DF, 11 de janeiro de 2024, Memória de Santo Higino (o nono Papa).
[1] OPORTO, Santiago Guijarro. GARCIA, Miguel Salvador (Organ). Comentário ao novo testamento (Tradução de José Joaquim Sobral). São Paulo, Ave Maria, 1997, vol. II, p. 13.
[2] BARCLAY, William. Palavras chaves do novo testamento. (Tradução de Gordon Shown). São Paulo: Juerp, 1985, p. 69.
[3] BORING, M. Eugene. Introdução ao novo testamento, história, literatura e teologia, cartas católicas, sinóticos e escritos joaninos. (Tradução Adenilton Tavares Aguiar, Darcy Propodolski Pinto e Diego Rafael da Silva Barros). São Paulo: Paulus. Santo André: Academia Cristã: 2016, v. II, p. 965. BITTENCOURT, OSB, Dom Estêvão. Lima, Maria de Lourdes Corrêa. Curso bíblico mater ecclesiae. 2ª Edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016, p. 81. OPORTO, Santiago Guijarro. GARCIA, Miguel Salvador (Organ). Comentário ao novo testamento (Tradução de José Joaquim Sobral). São Paulo, Ave Maria, 1997, vol. II, p. 25.
[5] MARGUERAT (Organ), Daniel. Novo testamento história, escritura e teologia. (Tradução Margarida Oliva). 2ª Ed. São Paulo: Loyola, 2012, p. 15.
[6] CESARÉIA, Eusébio. História eclesiástica. (Tradução Monjas Beneditinas do Mosteiro Maria Mãe de Cristo). 1ª Ed. 4ª Reimpressão. São Paulo: Paulus, 2019, p. 169.
[7] CESARÉIA, Eusébio. História eclesiástica. (Tradução Monjas Beneditinas do Mosteiro Maria Mãe de Cristo). 1ª Ed. 4ª Reimpressão. São Paulo: Paulus, 2019, p. 244.
[8] CESARÉIA, Eusébio. História eclesiástica. (Tradução Monjas Beneditinas do Mosteiro Maria Mãe de Cristo). 1ª Ed. 4ª Reimpressão. São Paulo: Paulus, 2019, p. 312.
[9] MARGUERAT (Organ), Daniel. Novo testamento história, escritura e teologia. (Tradução Margarida Oliva). 2ª Ed. São Paulo: Loyola, 2012, p. 90.
[10] BROWN, Raymond E. FRITZMEYER, Joseph A. MURPHY, Roland E. Novo comentário bíblico são jerônimo novo testamento (Tradução Celso Eronildes Fernandes). São Paulo: Academia Cristã: Paulus: 2015, p. 133.
[11] OPORTO, Santiago Guijarro. GARCIA, Miguel Salvador (Organ). Comentário ao novo testamento (Tradução de José Joaquim Sobral). São Paulo, Ave Maria, 1997, vol. II, p. 25-26.
[12] BORING, M. Eugene. Introdução ao novo testamento, história, literatura e teologia, cartas católicas, sinóticos e escritos joaninos. (Tradução Adenilton Tavares Aguiar, Darcy Propodolski Pinto e Diego Rafael da Silva Barros). São Paulo: Paulus. Santo André: Academia Cristã: 2016, v. II, p. 969.
[13] BERGANT, Dianne. KARRIS, Robert J. (Organ.). Comentário bíblico (Tradução Barbara Theoto Lambert). 8ª Ed. São Paulo: Loyola, 2014, vol. III, p 12.
[14] LEAL, SJ. Juan (Organ.) La sagrada escritura texto y comentario nuevo testamento. BAC,Madrid, 1967, vol. I, p. 19-20.
[15] HAHN, Scott. MITCH, Curtis. O evangelho de são mateus: cadernos de estudo bíblico. (Tradução de Thomaz Perroni). São Paulo: Ecclesiae, 2014, p. 29-30.
[16] LEAL, SJ. Juan (Organ.) La sagrada escritura texto y comentario nuevo testamento. BAC,Madrid, 1967, vol. I, p. 21-22.